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Escrever, cortar, escrever: a concisão e a clareza

“Escrever é cortar palavras”, disse Carlos Drummond de Andrade, mas talvez não tenha sido ele: parece que, na ânsia de enxugar, alguém acabou cortando o crédito. Importa pouco a autoria do conselho. Com essas ou outras palavras, o elogio da concisão é a lição mais ouvida por aprendizes das letras há mais de cem anos. Quer dizer que antes disso o poder de síntese não valia nada? Claro que valia. Os poetas da antiga Grécia cultivaram a brevidade do epigrama. No início do século XVIII, o poeta inglês Alexander Pope, tradutor de Homero, dizia que palavras são como folhas de árvore: quando são muito abundantes, diminui a chance de vislumbrarmos ali embaixo “o fruto do sentido”. No entanto, parece ter sido nas primeiras décadas do século XX que o relógio do mundo acelerou de vez e deixou com cara de obesa uma silhueta textual – a palavrosa – que até então ainda podia ser vista como atraente e saudável. Mais ou menos o que tinha ocorrido um pouco antes com as mulheres de Rubens. Pode-se relacionar esse aguçamento da implicância com o desperdício vocabular a uma série de fenômenos, como a industrialização e a vida urbana. Parece claro que um…

Entre Narciso e o suicídio, a literatura balança

A literatura é hoje um campo que se questiona de modo histérico, com resultados entre o suicida e o narcísico. O discurso literário parece sentir que perdeu o direito à existência. O que quer que o justificasse perante si mesmo não o justifica mais. Entre as atitudes que o discurso literário toma diante disso, destaco duas que me parecem especialmente significativas: deitar no caixão e declarar-se morto, como um personagem de Nelson Rodrigues, procedendo então à auto-autópsia; ou, feito uma drag queen de quermesse, se montar inteiro com maquiagem, bijuterias, próteses, piscando muito para o espelho e dizendo: “Eu existo, ói eu ali”. (Seria interessante – mas foge aos propósitos deste artigo, para não falar da minha competência – investigar o que haverá de analogia estrutural e especularidade simbólica entre duas crises culturais contemporâneas, a “do macho” e a da literatura de ficção.) A verdade é que, além daqueles que a fazem e da pequena seita que a consome sistematicamente, ninguém no mundo está prestando lá uma terrível atenção à ficcão literária, como diriam em inglês – literatura artisticamente ambiciosa, digo eu. A ficção comercial vai bem, mas o público da ficção dita séria míngua ao mesmo tempo que se…

Textos com franjinha

Num dos curtos ensaios de crítica cultural que escreveu entre 1954 e 1956, reunidos no livro “Mitologias” (Difel), o semiólogo francês Roland Barthes se detém com especial crueldade nas franjinhas exibidas por todos os personagens masculinos do filme “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz, adaptação hollywoodiana da peça de William Shakespeare, com Marlon Brando (foto) no papel de Marco Antônio e James Mason no de Brutus. Declarando o cabeleireiro o “principal artesão do filme”, Barthes registra a variedade das franjas exibidas pelos atores, dizendo que “umas são frisadas, outras filiformes, outras em forma de topete, outras ainda oleosas, todas bem penteadas; os calvos não foram admitidos, embora abundem na história romana”. No entanto, encontra para todas elas um propósito único, que chama de “ostentação da romanidade”: A madeixa na testa torna tudo bem claro; ninguém pode duvidar de que está na Roma antiga. E esta certeza é constante: os atores falam, agem, torturam-se, debatem questões “universais”, sem que, graças à bandeirinha suspensa na testa, percam seja o que for da sua verossimilhança histórica. Mas o que Barthes tem contra franjas romanas, afinal, se nenhuma representação artística pode prescindir de artifícios desse tipo ao propor seu jogo de faz-de-conta? A resposta…

1975: o ano em que a literatura explodiu

Nada a ver com saudosismo. Eu mal entrava na adolescência, e os livros que lia na época eram bem diferentes dos que vou citar aqui. Apenas aconteceu que, intrigado por uma coincidência flagrada casualmente, comecei a puxar um fio na estante e acabei com uma pilha de evidências de que a safra de 1975 foi gloriosa para a literatura brasileira – a última de nossas safras gloriosas, como se depois disso a terra tivesse secado, tornando as colheitas mais espaçadas. Antes de tentar explicar a generosidade literária daquele tempo – e a relativa sovinice dos anos seguintes –, convém justificar a tese. Para tanto basta dizer que 75 trouxe à luz, de uma só vez, duas obras-primas espantosas e cabais: “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, e “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar (eis a coincidência em que reparei por acaso). Só isso já seria histórico. Tem mais. De saída, que tal juntar à pilha o “Zero” de Ignácio de Loyola Brandão? A qualidade é desigual, eu sei. Talvez o confuso “Zero” nem faça muito sentido lido fora da moldura de um regime autoritário, mas, censurado, converteu-se em livro-símbolo de um tempo. Ou seja: entre méritos literários e históricos, entre texto…

Notícia da atual literatura brasileira: instinto de internacionalidade (II)

Falávamos das respostas que a literatura brasileira ensaiou ao longo da história para a velha charada de produzir arte relevante num país situado na periferia econômica e cultural do mundo. Como já deixei sugerido, acredito que o novo livro de João Paulo Cuenca, “O único final feliz para uma história de amor é um acidente”, possa trazer um ou dois elementos novos para a conversa. Um deles é o de, roubando novamente a ideia de Machado de Assis com sinal trocado, nos fazer pensar que boa parte da literatura brasileira contemporânea pode estar sofrendo de uma “internacionalidade de vocabulário”. Par oposto do nativismo de Alencar e Gonçalves, em que o índio é enfiado numa forma europeia sem alterá-la significativamente, a “internacionalidade de vocabulário” seria a propensão de soar cosmopolita (todos queremos ser universais, certo?) por meio da citação, do adorno, da ostentação de cultura, sem que isso altere de modo significativo o que está sendo narrado e como. Às vésperas da Copa de Literatura de 2009, o jurado e blogueiro que se assina Doutor Plausível escreveu um artigo curioso afirmando ter contado um a um os casos de name-dropping, de citação de pessoas ou objetos culturais – nacionais e estrangeiros…

Notícia da atual literatura brasileira: instinto de internacionalidade

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de internacionalidade. A frase que você acaba de ler é uma cópia quase perfeita daquela que abre o mais famoso texto crítico de Machado de Assis, chamado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, de 1873. A troca da nacionalidade pela internacionalidade não tem uma intenção rasa de paródia: com sorte, será o ponto de partida para uma tentativa de jogar luz sobre as respostas novas que a literatura brasileira do século XXI – sim, esta mesmo, que contava com 4.203 leitores na última pesquisa – possa estar formulando agora para o velho problema de produzir arte relevante num país situado na periferia econômica e cultural do mundo. Há também, reconheço, uma forma menos benevolente de encarar este parágrafo: como nariz-de-cera (que em jargão de jornalista quer dizer prólogo enfadonho) para uma resenha do recém-lançado romance “O único final feliz para uma história de amor é um acidente” (Companhia das Letras), do escritor carioca João Paulo Cuenca. Espero ser capaz de desmentir essa impressão. O livro de Cuenca é mesmo o gancho deste texto – para insistir no jargão jornalístico – e vai ser abordado na…

As lições da senhora Ros, ‘a pior escritora do mundo’

É possível que a romancista e poeta Amanda McKittrick Ros (foto), uma professora nascida em 1860 na Irlanda do Norte, não tenha sido a pior escritora do mundo. Com certeza foi a escritora ruim que mais sucesso fez justamente pela ruindade de sua literatura. Esbarro em sua história fascinante no ebook Epic fail (Fracasso épico), de Mark O’Connell, que teve um trecho (em inglês) reproduzido há poucos dias na revista eletrônica Slate. O surrealismo involuntário da prosa absurdamente artificiosa de Ros já foi apontado por sua legião de admiradores-detratores – com hífen porque são as mesmas pessoas, a admiração sendo no caso uma forma de gozação. A novidade do enfoque de O’Connell é lançar a hipótese de que Ros também tenha inventado sem querer o pós-modernismo ou pelo menos um de seus traços mais marcantes, a elevação irônica da ruindade galopante a uma forma de arte. Não se trata de fenômeno isolado. Ros está para as letras como Ed Wood está para o cinema e Pedro Carolino, autor do hilariante “Novo guia da conversação em portuguez e inglez” (Casa da Palavra), para os estudos linguísticos. Mestre insuperável da purple prose, como os anglófonos chamam o estilo empolado típico da subliteratura,…

Que cena! A xícara de café de ‘Dom Casmurro’

Lanço hoje uma nova seção no Todoprosa, chamada “Que cena!”. Durante alguns anos, os “Começos inesquecíveis” – posts em que eu apresentava trechos iniciais marcantes de grandes romances, acompanhados de breves comentários que davam pistas sobre o porquê de sua permanência – foram os mais visitados e linkados do blog. O sucesso, imagino, teve tanto a ver com a qualidade dos começos em si quanto com a sede de informação de um país que, em grande parte, mal começa a aprender a ler. Os “Começos inesquecíveis” passaram a ser tomados por muita gente como indicadores de leitura, com a vantagem de já virem com amostras do estilo de cada autor. A seção chegou ao fim naturalmente, de puro cansaço. Seria absurdo sugerir que esgotaram-se os bons começos disponíveis na literatura universal. O que passou perto de se esgotar foi a reserva dos começos que marcaram minha memória de leitor – e a ideia sempre foi partir da experiência pessoal, tentar compartilhar um prazer a quente em vez de ensinar uma matéria a frio. A seção “Que cena!” se baseia numa ideia semelhante: publicar pequenos trechos especialmente marcantes de grandes livros, agora extraídos de qualquer ponto, começo, meio ou fim. Trata-se…

Concentração dividirá o mundo entre senhores e escravos

Até o fim da Copa do Mundo, que estou cobrindo para VEJA, o blog traz uma seleção de posts de outras jornadas. O artigo abaixo foi publicado em 29/6/2011. . Antes do tsunami digital, o poder pertencia aos detentores da informação. Agora, com a informação mais desvalorizada que cruzados e cruzeiros nos anos Sarney e Collor, a moeda em alta será cada vez mais a capacidade de concentração – aquela exigida por exemplo de quem mergulha na primeira página de um livro para emergir na última, sem parar dez mil vezes no meio do caminho para conferir o e-mail ou se divertir com vídeos virais no YouTube. Parece um paradoxo, mas não é. O turbilhão das informações online é superficial para quem o consome, não para quem o produz. Toda horizontalidade tem uma dimensão vertical que a sustenta: o vídeo viral que se engole em um minuto e meio exigiu tempo e concentração de seu autor ou autores. A capacidade de imersão atenta e refletida que o mundo digital parece disposto a aniquilar é, no fundo, um dos pilares de sua linha de produção. Uma pesquisa feita no mês passado nos EUA pela Nielsen apurou números interessantes: a maior parte…

A internet é uma máquina de fazer idiotas?

De hoje até o fim da Copa do Mundo, que cobrirei para VEJA, o Todoprosa trará uma seleção de colunas de outras jornadas. As duas abaixo foram publicadas em 9 e 11 de janeiro de 2012. . “A geração superficial – O que a internet está fazendo com os nossos cérebros” (Agir, 384 páginas) é o livro que consolidou a posição do jornalista americano Nicholas Carr como principal crítico cultural do mundo digital. O livro nasceu de um artigo polêmico que Carr publicou em 2008, chamado “O Google está nos deixando burros?”, comentado na época aqui no blog. A tese central é a mesma: ao nos ensinar a ler de outra forma – veloz, horizontal, volúvel, interativa, baseada na satisfação imediata –, a tecnologia digital está reprogramando nossas mentes no nível bioquímico, devido a uma característica do cérebro chamada neuroplasticidade. Em consequência disso, a capacidade da espécie de acompanhar raciocínios longos e mergulhar sem distração na solução de um problema complexo pode estar simplesmente em vias de extinção. Se a ideia central já constava do artigo de 2008, “A geração superficial” sustenta o pessimismo de seu autor com uma impressionante variedade de informações históricas, científicas, econômicas etc. Consegue manter no…