O neurocientista Miguel Nicolelis (foto) e o professor de filosofia da religião Luiz Felipe Pondé protagonizaram hoje à noite, numa Tenda dos Autores lotada, uma das mesas mais cabeçudas da história da Flip, chamada “O humano além do humano”, com mediação da jornalista Laura Greenhalgh. Como água e azeite, não se misturaram, apesar dos esforços da mediadora, nem poderiam: o triunfalismo científico (não sem razão) de Nicolelis e o pessimismo filosófico (idem) de Pondé acabaram criando um curioso espetáculo de claro-escuro. “Se a palavra milagre não tivesse sido adotada por outro ramo de negócios, deveria ser usada pela neurociência, porque estamos fazendo algumas coisas até melhores do que os velhos milagres hoje”, disse o primeiro. “O ser humano mata porque gosta”, afirmou o segundo. Foi divertido. Autor do recém-lançado “Muito além do nosso eu” e apontado pela revista Scientific American um dos vinte pesquisadores mais importantes da atualidade, o paulista Nicolelis falou primeiro, caminhando de um lado ao outro do palco e ilustrando seu discurso com imagens no telão. Era claramente um discurso ensaiado, com floreios poéticos (“as linhas de poesia elétrica desses bilhões de compositores que formam a única orquestra conhecida”, disse, falando do cérebro). A mensagem, porém, era…
Na mesa “Marco zero modernista”, diante de um auditório com cerca de 80% de ocupação, hoje à tarde, os pesquisadores acadêmicos Marcia Camargos e Gonzalo Aguilar deram continuidade às homenagens a Oswald de Andrade, iniciadas ontem à noite na mesa de abertura. Não era fácil a tarefa de trazer novos ingredientes ao banquete antropofágico proposto pela Flip, após o prato principal representado pelo venerável Antonio Candido, e dela saiu-se melhor o argentino Aguilar, que morou no Brasil e é autor de um livro ainda sem tradução em português chamado Por una ciencia del vestigio errático – ensaios sobre a antropofagia de Oswald de Andrade. Falando em português com forte sotaque portenho e algumas recaídas no espanhol, que não prejudicaram a compreensão do público, Aguilar partiu do quadro “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, para falar da principal “inversão” que inspirou Oswald a criar o movimento antropofágico: a subversão da hierarquia tradicional representada por uma figura de pé enorme e cabeça minúscula. “Isso tem a ver com a literatura de Oswald, que é uma literatura do corpo, muito erótica. O pé fala da mobilidade, que, como disse ontem Antonio Candido, define sua obra. Ir caminhando e inventando no caminho, essa ideia está…
Foi bem recebido em Paraty o anúncio do novo programa de apoio à tradução de autores brasileiros no exterior, feito no fim da tarde de hoje, na Casa da Cultura pela ministra da Cultura, Ana de Hollanda. Ele prevê a concessão de bolsas de tradução no valor de 7,6 milhões de dólares até 2020 – do total, 635 mil dólares ja este ano, o triplo do que vinha sendo investido. Falta fazer muita coisa, mas Frankfurt 2013 começa a ganhar forma. Se “o Brasil acorda”, como disse Oswald de Andrade (post abaixo), para um certo protagonismo econômico e político mundial, eis um indício de que pode estar finalmente percebendo o óbvio: que a cultura precisa ir junto.
Na morna mesa de abertura da Flip 2011, hoje à noite, o crítico literário e ensaísta Antonio Candido, 93 anos, não foi nem crítico nem ensaísta ao falar de Oswald de Andrade, o escritor homenageado da festa este ano. Foi memorialista, contando casos para ilustrar a personalidade marcante do poeta e provocador cultural modernista. “Hoje eu sou um sobrevivente”, disse. “Só eu posso falar como era Oswald de Andrade.” Coube a José Miguel Wisnik, que dividiu a mesa com Candido, abordar o legado de Oswald, sintetizado no “Manifesto antropófago”, e tentar dar sustentação à tese de que, além de ter influenciado movimentos artísticos como o concretismo e a tropicália, ele permanece atual no século 21. Candido pintou o retrato de um Oswald brigão mas generoso, sarcástico mas de candura infantil, agressivo mas carente de carinho, que gostava de “brigar e desbrigar, xingar e elogiar”, e que jamais guardava rancor. Uma personalidade tão forte e tão propícia à criação de lendas – como a de que tinha um filho chamado Lança-Perfume, à qual muita gente dava crédito – que, acredita Candido, acabou por prejudicar a recepção de sua obra. “Era muito difícil encontrar um livro dele para comprar”, disse o crítico….
Em sua nona edição, que começa hoje à noite com uma palestra do crítico Antonio Candido e sob o signo da “antropofagia” de Oswald de Andrade, o homenageado do ano, a Festa Literária Internacional de Paraty dá sinais de amadurecimento como grande evento do mercado literário brasileiro, inspirador de uma série de festas espalhadas pelo país – como mostrou a boa reportagem de Beatriz Souza aqui em VEJA.COM. Essa posição central a Flip ocupa há anos, é verdade, mas vejo indícios de amadurecimento em pelo menos uma das atrações que ocorrerão no entorno da Tenda dos Autores: as duas conferências do projeto Brazilian Publishers, na noite de quinta-feira, em que editores e agentes literários nativos e estrangeiros discutirão diante da plateia da Casa da Cultura modos de divulgar a quase secreta literatura brasileira no exterior – questão crítica num momento em que o Brasil ensaia para ser o país homenageado em 2013 na Feira de Frankfurt, principal vitrine do mercado editorial no mundo. A esperança de que o encontro possa ir além do bate-papo para influir na definição de uma política cultural baseia-se na presença, entre os debatedores, de Galeno Amorim, presidente da Biblioteca Nacional e encarregado de preparativos, que,…
Em 1927, num debate transmitido pelo rádio, perguntaram a Virginia Woolf se não estavam sendo escritos e publicados livros demais – sim, já naquele tempo. A resposta da autora de “Orlando” foi espirituosa: “Por que não publicar a primeira edição em algum material perecível que se desfaça num montinho de pó perfeitamente asseado no prazo de seis meses? Se uma segunda edição fosse necessária, esta sim poderia ser impressa em papel bom, com boa encadernação… Não se desperdiçaria espaço e não se acumularia lixo”. A mordaz profecia finalmente pode se cumprir, e com evidentes vantagens sobre o “montinho de pó”, na era digital. Mais sobre Woolf, a crítica literária, em inglês, aqui. * “Um homem pode fugir e não ser um covarde, pode abandonar um movimento e não ser um traidor, pode matar e não ser um criminoso.” O “Babelia” publicou um fragmento inédito de La fuente muda, romance que Ernesto Sábato abandonou. O escritor argentino, que morreu no último 30 de abril, teria completado cem anos há uma semana. * “Esse livro de ensaios é na verdade divertido – e isso é algo que eu fico muito surpreso de escrever sobre teoria literária.” No blog do “Guardian”, Sam Jordison…
A convicção de que o romance tem um centro faz sentir que um detalhe supostamente irrelevante pode ser substancial e que o significado de tudo que está na superfície pode ser bem diferente. Romances são narrativas abertas a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos dá a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos faz mergulhar num universo tridimensional, vem da presenca do centro, seja ela real ou imaginária. O que basicamente separa um romance de um poema épico, ou de uma tradicional narrativa de aventura, é a ideia do centro. Romances apresentam personagens bem mais complexos que os de poemas épicos; focalizam pessoas comuns e exploram todos os aspectos da vida diária. Mas devem essas qualidades e esses poderes à presenca de um centro em algum lugar ao fundo da cena e ao fato de lermos com essa esperança. Como os romances revelam detalhes triviais da vida e nossas pequenas fantasias, hábitos diários e objetos familiares, o leitor lê com curiosidade – a rigor, com assombro –, sabendo que tudo aponta para um sentido mais profundo, para um propósito em algum lugar ao fundo da cena. Cada característica da paisagem…
Revitalização da boa e velha arte narrativa. Capacidade de prender o leitor na história que se desenrola nas (muitas e muitas) páginas de um romance-tijolo sem fazer concessões às fórmulas do best-seller. Ambição de dar conta de um momento histórico em seus diversos aspectos por meio de personagens fortes dotados de apetites que o leitor reconhece, a começar pelo apetite propriamente dito. Tudo isso poderia ser dito – e vem sendo dito – de Jonathan Franzen, autor do mais-que-festejado “Liberdade”. Tudo isso pode ser dito com mais propriedade de James Ellroy, a principal atração da Flip que começa daqui a três semanas. Isso não quer dizer que eles sejam parecidos. Nem de longe, embora ambos se declarem fãs e devedores do grande mestre do romance oitocentista, Leon Tolstoi. Quer dizer apenas que mérito e reconhecimento são curvas independentes, que se encontram e se desencontram de modo imprevisível. Ellroy é mais fragmentado, nervoso, experimental, paranoico, sujo e desbocado que seu compatriota que vem sendo chamado de gênio. Em vez de aspirar a um romance redondo, produz narrativas prismáticas e cheias de arestas que incorporam personagens da vida real, notícias de jornal e relatórios de legistas. Despreza a classe média “normal” que…
Tenho o prazer de informar que os leitores deste blog se desincumbiram gloriosamente mal da tarefa de adivinhar o sexo dos escritores a partir de pequenos trechos de sua prosa, na brincadeira proposta aqui sexta-feira passada. Naturalmente, era essa mesmo a ideia: demonstrar a estupidez de uma declaração de VS Naipaul sobre o suposto abismo (de qualidade, ainda por cima) que separa homens e mulheres na hora de escrever. Num universo de 293 participantes, a resposta certa – “mulher, homem, homem, mulher” – foi apenas a quarta mais votada, com 14% das preferências. Mais interessante do que isso foi o fato de a resposta campeã, que levou 33% dos votos, ter sido “homem, mulher, mulher, homem”, que é simplesmente a mais errada de todas – o negativo perfeito da correta. O resultado completo ficou assim: . [poll id=”21″] . Vamos aos autores: O trecho 1 foi extraído do bom romance “Esperando Zilanda”, da autora estreante Tamara Sender. O 2 é a abertura do conto O rapaz mais triste do mundo, do livro “Os dragões não conhecem o paraíso”, de Caio Fernando Abreu. O 3 saiu do romance “Olhos secos”, de Bernardo Ajzenberg. O 4 faz parte do romance “As pernas…
Será que o sexo de um autor, além de inscrito em seus genes, também sai impresso na página entre vírgulas e verbos, de forma inconsciente e sem que ele possa fazer nada para evitar? A discussão, notoriamente inconclusiva, é velhinha, mas acaba de pegar fogo como nunca na Inglaterra. Tudo começou com uma declaração repulsiva dada esta semana por VS Naipaul (foto), prêmio Nobel de Literatura em 2001: a de que não vê nenhuma mulher na história da literatura que possa rivalizar com ele. “Não são minhas iguais”, disse. E, numa tentativa de demonstrar que sua tese não era apenas fruto de um cruzamento teratológico de misoginia com egolatria, acrescentou: “Leio um trecho e, em um parágrafo ou dois, sei se é de uma mulher ou não”. Hmm, sei. O “Guardian” aproveitou a deixa para bolar um certo “teste Naipaul”, pedindo aos leitores que identifiquem o sexo dos autores de alguns trechos literários. É o que estou imitando descaradamente aqui com quatro autores brasileiros, dois de cada sexo. O resultado sai na semana que vem. 1. Eu disse que ateus e crentes fazem parte do mesmo grupo. Todos acreditam em algo. Todos podem dormir e roncar tranquilos, amparados no estofado…
Quem gosta de estar em dia com o pulso das discussões literárias deve ir correndo comprar “O livro de Praga” (Companhia das Letras, R$ 37,50), a aguardada contribuição de Sérgio Sant’Anna à coleção Amores Expressos. Ali aos sussurros, acolá aos gritos, a polêmica vem dominando a semana nos meios letrados brasileiros: o livro é muito bom, muito ruim ou mais ou menos? Por enquanto, fica o registro do zunzum em torno de um dos escritores brasileiros mais respeitados por seus pares. Comecei a leitura ontem à noite e, como ainda estou no terceiro de sete episódios – quase contos autônomos, quase capítulos de um romance – a hora é de guardar silêncio. * Uma tradução para o inglês do conto “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu, aparece no número de junho da revista eletrônica Words Without Borders, bíblia americana do que se poderia chamar de world literature. O tema da edição é ficção gay. * No post anterior, sobre a maioridade dos blogs literários, faltou mencionar um jeito de, num clique só, ter uma vista panorâmica do que rola em parte significativa dessa província virtual: o capítulo Literatura do site agregador as últimas. É verdade que, contrariando seu nome, ele…
Antes que acabe maio, mês de aniversário do Todoprosa, faça-se o registro: este espaço de discussão de literatura acaba de completar cinco anos. Desde sua estreia no extinto site “NoMínimo”, no início de maio de 2006, foram 1.253 posts, todos ainda acessíveis, e um número de comentários arquivados – 24.312 – que deveria ser maior, não fosse a perda de memória de seis ou sete meses ocorrida numa das migrações de servidor, em 2008. Muita coisa mudou em cinco anos na paisagem da blogosfera literária. As caixas de comentários, por exemplo, que chegaram a ser transformadas pela turma da literatura em salas de chat animadas – e muitas vezes até perigosas, com garrafas e ferros de passar riscando o ar – perderam importância com a ascensão das redes sociais. Hoje a repercussão de um post é medida muito mais por meio do Twitter e do Facebook. Mas a mudança mais significativa se deu no próprio formato: blogs que, como este, baseiam seu cardápio em informação e num tipo de opinião mais analítica que idiossincrática eram raridade em 2006. De lá para cá, o processo que talvez se possa chamar de profissionalização – embora ainda inclua franco-atiradores de comovente amadorismo –…
A revalorização da ficção como arte narrativa por excelência, em ligação direta com a tradição romanesca do século 19, parece ser o pano de fundo para o curioso fenômeno de canonização do escritor americano Jonathan Franzen, um tsunami que varreu o mundo ano passado, quando ele publicou o romance Freedom, e que agora vem inundar a costa brasileira com a previsibilidade dos maremotos a pretexto do lançamento de “Liberdade” (Companhia das Letras, tradução de Sergio Flaksman, 608 páginas, R$ 46,50). O livro é bom? É. Maravilhoso? Longe disso. Em contraste com a maioria da humanidade, não me encantei com ele e expliquei minhas razões aqui, sob o título Freedom: Obama no conteúdo, Bush na forma, pouco depois do lançamento americano. Vejo até algo de cômico num superlativo como “o livro do século” que o sério “The Guardian” pespegou no tijolo: se o epíteto abrange o século inteiro, trata-se de uma leviandade; se a ideia é falar do século até agora, decorrido um décimo dele, o correto seria usar uma medida de tempo mais sóbria. Fica evidente, porém, que elogios desse tamanho vão além de questões menores como coerência numérica. Méritos literários à parte, o que o hype franzeniano parece indicar,…
E o Brasil finalmente acerta o passo com o escritor catalão Enrique Vila-Matas. O lançamento do romance “Dublinesca” (Cosac Naify, tradução de José Rubens Siqueira, R$ 55,00), hoje à noite, em São Paulo, com a presença do autor, marca o momento em que sua obra tão prolífica quanto festejada passa a chegar aos leitores brasileiros em tempo real ou quase isso: o livro saiu ano passado na Espanha e ainda nem está disponível em inglês. É verdade que Vila-Matas, o anti-Bartleby por excelência, já enfileirou outros dois títulos (recapitulando escritos antigos) desde então, mas sobre isso, tradução simultânea à parte, não há nada que se possa fazer. É a primeira vez que a defasagem entre lançamento original e edição brasileira fica tão curta desde que, em julho de 2004, com “A viagem vertical” (de 1999), a mesma Cosac Naify começou a introduzir os leitores brasileiros à obra daquele que é um dos principais autores da literatura contemporânea e talvez o mais desavergonhadamente metaliterário – de uma metalinguagem lúdica que é o oposto da pompa e da sisudez – da história. Dois meses depois da publicação de “História abreviada da literatura portátil” (tradução de Júlio Pimentel Pinto, R$ 39,00), o mais…
A morte do escritor argentino Ernesto Sabato (1911-2011) no último sábado, a menos de dois meses de completar cem anos, motivou os elogios fúnebres de praxe. Pena que o necrológio, esse gênero cheio de superlativos que precisa dar ao leitor a ilusão de que o redator tem os olhos marejados, não seja bom condutor de inteligência e senso de perspectiva histórica. É porque Sabato merece ambos que o artigo publicado ontem no jornal espanhol “El País” pelo escritor argentino Jorge Fernández Díaz, sob o título “Os claro-escuros do túnel” (em espanhol, acesso gratuito), se torna mais notável na exposição dos fatores que levaram o autor de “Sobre heróis e tumbas” a morrer com seu prestígio literário em queda livre. Para resumir os argumentos de Díaz, enunciados no trecho abaixo, são dois os inimigos da reputação de Sabato. Um é estético-mundano, o outro é político. Um é de direita, o outro é de esquerda. Ambos são poderosíssimos: Jorge Luis Borges e o kirchnerismo. Literária ou não, jagunçagem é sempre um assunto triste, mas mantê-la na sombra do não-dito só lhe agrava o potencial de injustiça. Quem pode garantir saber o que dirá a posteridade, que para Sabato mal começou? Como Díaz,…
Em clima de feriado, o Todoprosa entra firme numa discussão de vital importância tanto para a compreensão do passado quanto para o bom desenvolvimento futuro das letras universais: se você é um escritor, é melhor ter em casa a companhia de um gato ou de um cachorro? No blog de livros da revista “New Yorker”, Elizabeth Minkel dá os links de dois ótimos acervos visuais de escribas com inclinação canina e felina: um fotolog chamado Writers and kitties (Escritores e bichanos), que compila imagens de qualidade variada e de onde saiu o fantástico autorretrato de Julio Cortázar aí ao lado, e o trabalho autoral de Jill Krementz sobre escritores e seus cães. No entanto, percebe-se logo que a parte informativa do post de Minkel soa como pretexto e que suas intenções são proselitistas: ela defende a incontestável superioridade dos gatos como animais de estimação em casas literárias, usando o velho argumento de que felinos combinam mais com pessoas solitárias e ensimesmadas – como são sem dúvida os escritores, pelo menos enquanto estão escrevendo. Pode ser, pode não ser. Entre gatos e cachorros, eu fico em cima do muro. E não porque seja um agente duplo como Stephen King, que aparece…
Os leitores habituais deste blog sabem que raramente conto aqui histórias pessoais. Sei que desse modo contrario o que, a julgar pela evasão de privacidade cultivada por grande parte dos colegas, é uma vocação do meio. Prefiro ser fiel a uma vocação minha e dosar a primeira pessoa. Todo esse nariz de cera é para abrir uma baita exceção e contar que um dia tive uma namorada inglesa que odiou – ou talvez eu devesse carregar no verbo e escrever abominou, execrou – nossa grande Clarice Lispector. Foi um episódio marcante. Eu tinha vinte e cinco anos e morava em Londres, como correspondente de um jornalão brasileiro. Ela tinha no trato afetivo um pragmatismo anglo-saxônico que eu, acostumado ao ronronar dos namoros brasileiros, via como distância emocional. Incomodado com a dissociação entre corpo quente e alma fria, julguei necessário corrigi-la. Como? Ah, mas é claro. Quem disse que a literatura não serve para nada? Minha namorada inglesa (mas talvez ficante, palavra que eu não conhecia na época, caiba melhor) era uma ardorosa leitora. Tínhamos papos animados, eu mais ouvindo que falando, sobre escritoras que a faziam vibrar: Isak Dinesen, Jean Rhys, Angela Carter. Hmm, pensei, julgando-me perspicaz: todas mulheres. Achei…