Começa com uma criança que nunca foi adulta e acaba com um adulto que nunca foi criança.
Algo parecido.
Ou melhor: começa com um suicídio adulto e uma morte infantil e acaba com uma morte infantil e um suicídio adulto.
Ou com várias mortes e vários suicídios em idades variáveis.
Não tenho certeza. Não tem importância.
Como se sabe – se desculpa e se perdoa –, os números, os nomes, os rostos costumam ser os primeiros a se atirar do navio ou a saltar da plataforma durante o naufrágio dessa memória sempre a ponto de ser aniquilada sobre os trilhos do passado.
Uma coisa está clara: no fim do começo, no começo do fim, Peter Pan morre.
Assim começa o romance “Jardins de Kensington” (Conrad, 2007, tradução de Sérgio Molina), do escritor argentino – radicado na Espanha – Rodrigo Fresán. O narrador é um escritor fictício, Peter Hook, mistura de herói e vilão a partir do nome em que se fundem Peter Pan e o Capitão Gancho. Hook, uma cria dos anos 60, alimenta uma obsessão por J.M. Barrie, autor da famosa fantasia vitoriana, e despeja seu drama sobre um ouvinte menino em condições peculiares. A história intrincada e maluquete construída a partir daí, sobre o tema da infância, deve ser desvendada aos poucos pelo leitor ao longo do tijolo de mais de 500 páginas. Tempo não deve faltar: Fresán adora um circunlóquio, mas, depois desse início, abandonar a leitura quem há de? Adendo às 11h49: muitos hão de, se forem representativos os primeiros comentários aqui embaixo.
27 Comentários
Eu haverei de. Achei um início rotineiro. O livro voltaria à estante imediatamente.
Assim não dá.
Não passaria da terceira linha.
Caramba. Como o mundo, mesmo o pequeno mundo dos leitores, é vário. É uma pena, acreditem, desistir tão depressa. O livro de Fresán, que ainda não terminei, é estranho e bom, com uma ousadia de concepção que lhe compensa as não poucas falhas. Tenho vontade de dizer que é bem melhor que enorme maioria dos nossos, mas esse papo de que faz tempo que apanhamos da Argentina na literatura já cansou. O livro tem um excesso, uma prosa enamorada de si mesmo que incomoda. Esse pecado é geralmente atribuído – sem razão, a meu ver – a um amigo de Fresán que ele, naturalmente, faz questão de recitar, o Bolãno. Bom, méritos do livro à parte, acho o começo razoavelmente climático e bastante instigante na sua promessa de mortes aos magotes, com a lenda de Pan incluída. Enfim, mundo vário.
Mais um pobre literato acometido pela maldição de Sterne. Que os deuses imortais tenham piedade de sua alma…
Adorei. Já me pegou pelos quatro primeiros parágrafos. Gosto demais desse tipo de narrativa instigante e aparentemente sem senso, mas nitidamente inteligente. Por fim, tenho uma queda pelo tema do suicídio.
Hoje, porém, com o tempo cada vez mais escasso para tanta coisa, a leitura entre elas, livros grandes me causam ataques de ansiedade. Diante de volumes com 400, 500 páginas, o desespero da falta de tempo aumenta e parece que o prazer da leitura diminui. Ler com prazer, acabar a história rápido? Bem, vou tentar o Fresán pra ver no que dá.
PS: Sérgio, vc me estimulou a retomar o blog. Tem um Zuenir e um Vila-Matas lá. Abs
Isabel, entendo a ansiedade, mas tento relativizá-la. Tem muitas 50 páginas por aí que são uma perda de tempo dez vezes maior do que certas 500. Gostei muito de saber da sua reconciliação com o blog, assim que tiver um tempinho vou lá ver. Abraços.
Pegou, já dei um ctrl+c seguido de um ctrl+v para uma página do word a ser consultada em breve.
Assim como a Isabel Pinheiro, me interesso pelo tem ado suicídio.
Mais uma vez agradeço a dica Sérgio.
Abraços.
Também não gostei não. Mas quem sabe o que vem depois? Sou mais o Quincas Berro Dágua, do Jorge Amado, de que li aqui o começo inesquecível, um tempo atrás, e agora sorvi inteiro numa sentada, na reedição da Cia. das Letras.
Do Fresán li dois livros: Esperanto e Mantra. O sgeundo tinha tudo para ser ótimo, uma ficção-científica ambientada no D.F. mexicano, fruto de uma espécie de “Amores Expressos” hispanohablante. O livro, entretanto, é uma grande bagunça indigerível.
Já Esperanto é um livro bacana. Adolescente, amador em alguns aspectos, mas muito bacana.
Vou fazer coro aos demais. Achei o começo xexelento. Mas isso não garante a xexelentisse do resto. E, ah, não tenho nenhuma atração pelo tema “suicídio”. Já por Peter Pan, sim.
Pareceu fraco, muito fraco. O começo é Melville puro: “Call me Ishmael. Some years ago – never mind how long precisely…”. No texto do Frésan: “não tenho certeza, não tem importância… no começo do fim, no fim do começo”. Uma pena, mas á inspiração, óbvia, incomoda.
Além do mais, o sexto parágrado (“Como se sabe – se desculpa e se perdoa –, os números, os nomes, os rostos costumam ser os primeiros a se atirar do navio ou a saltar da plataforma durante o naufrágio dessa memória sempre a ponto de ser aniquilada sobre os trilhos do passado.”) é de uma pobreza atroz. Se o resto do livro é ainda pior…. putz melhor correr.
Renato, está certo que o mundo é vário, mas tem limite. Ver Melville nesse início do Fresán só pode ser brincadeira.
Também não “vi” Melville. Aliás, o Sérgio postou um texto, tempo atrás, sobre a tradução da primeira frase do Moby Dick. Muito bom. 🙂
Estou há tempos LOUCO pra ler esse livro! Mas agora é que não dá: acabo de gastar meus últimos centavos comprando o Putas assassinas do Roberto Bolãno, o Kafka à beira-mar do Haruki Murakami e o A República 3000 do Menotti del Picchia…
Alguém aí quer fazer um programinha? É baratinho… Aceito pagamento em livros. Rsrsrsrs.
Tibor,
Deixa de ser mentiroso. Tem vergonha não, Pinóquio? Seu interesse não é no Peter Pan. É na Wendy ou na Sininho. Pensa que não sei? rsrsrsrs.
Apesar do parágrafo que começa com: “Como se sabe…”. O resto do começo é interessante. Não me parece essa desgraça toda que a maioria aqui está achando. Embora eu não me interesse nem por suicídio nem por Peter Pan, se calhar eu acabo lendo o resto do livro para ter uma opinião mais fundamentada.
Jogando a merda no ventilador:
O problema é que todo mundo aqui é especialista em literatura e todo mundo faria uma obra muito, muitíssimo melhor que a desse merdinha argentino que se meteu a dizer que é escritor só porque escreveu um livro.
É ou não é, pessoal?
Sérgio,
Tu foi autopreventivo ao dizer que tá cansado do papo da surra dos argentinos nos brazucas, né?
Tá certo, eu sei que chateia e incomoda.
A verdade às vezes dói.
Cezar:
Que indelicadeza. O Sérgio Rodrigues não é, absolutamente, um mau escritor. O homem que matou o escritor é, na verdade, muito bom. Sobre o Flowerville, nada posso dizer. Continuo esperando que o Extra, a Sendas ou as Lojas Americanas o recebam a R$9,90. Deus há de, um dia. É só a gente ter paciência.
A não ser que você estivesse dizendo que ele foi “autopreservativo” preservando os escritores brasileiros e não a si próprio. Nesse caso, você tem inteira razão. Atualmente não há mais do que seis grandes escritores brasileiros escrevendo e publicando. Para um país do tamanho do Brasil, é um tanto quanto… como é mesmo a palavra?… vergonhoso.
Saint-Clair velho de guerra…
Como está esta força?
Olha, eu não falei que o Sérgio é mau escritor, falei?
Eu também gosto do “Homem que matou…”, embora não incondicionalmente, aliás, minha natureza praticamente me impossibilita gostar incondicionalmente de alguma obra literária contemporânea.
Acho que vale muito a pena ler o livro do Sérgio e meu exemplar talvez ganhe uma releitura em breve. Quanto ao “Flowerville”, eu também não o li, mas tá na pauta, porque sei de antemão que poderei até não gostar, mas com certeza verei ali habilidade literária e honestidade intelectual.
E já manifestei mais de uma vez apreço por escritos do Sérgio aqui, tecendo elogios.
Portanto, caro Saint-Clair, acho que não houve indelicadeza de minha parte para com o nosso anfitrião.
Agora, meu comentário teve um venenozinho mesmo, porque acho que o Sérgio deixou trair um certo corporativismo com os escritores brasileiros sim, embora eu não descarte a possibilidade de estar errado — quase sempre eu estou errado nessas coisas.
Ademais, leio razoavelmente a literatura que se faz no Brasil atualmente e bem menos, lógico, a que se faz na Argentina. E posso dizer sem pejo que no, geral, os hermanos estão com a bola mais cheia mesmo. Questão de gosto e como dizem por ai, gosto e…, cada um tem o seu.
Ah, Saint-Clair… francamente, até você faria um começo melhor que esse.
Nós aqui também somos obcecados com a vida de Barrie. Há boatos fabulosos (como a de que era nanico por razões *psicológicas*). Peter Pan é um livro inacreditavelmente bom.
Gosto tanto que me altero, nem consigo comentar decentemente. 🙂
O Sérgio comentou sobre a rivalidade Brasil-Argentina até na Literatura, e aproveito pra fazer uma pergunta fora do tópico: Porque no Brasil se lê pouco Cortázar, e ainda, porque se recomenda menos ainda… Todos os Fogos o Fogo está substituindo os Doze Contos Pelegrinos na minha cabeceira…
Elcaballero: não sei se Cortázar é pouco lido no Brasil, espero que não. O que ocorre é que, nos movimentos cíclicos das bolsas de valores literários, ele parece estar meio em baixa nos últimos anos – pelo menos entre o pessoal mais posudo, mais metido a leitor profissional. Mas essas coisas passam. Cortázar é um monstro de um escritor. Curioso você citar ‘Todos os fogos o fogo’, que sempre foi um dos meus preferidos. Um abraço.
Valeu Sérgio… ‘Todos os Fogos o Fogo’ é o primeiro livro dele que estou lendo, e espero ler mais coisas dele. Parece-me que ele fica na sombra dos seus contemporâneos da América dos Sul, ou mais exatamente da Argentina mesmo, mas como ‘leitor amador’, recomendo a todos….
Salve, galera!
Aqui quem tecla é o escriba a quem coube verter o tal tijolo em pauta.
Como brasilo-argentino, ou argento-brasileiro, não meto a colher no campo minado das rivalidades transplatinas. Mas dou meu depoimento pessoal sobre o tal começo: eu também demorei um pouco a entrar no clima, tanto na primeira leitura quanto na tradução propriamente dita. Mas acho que o que vem depois, como o próprio agitador deste espaço já disse, vale o esforço de atravessar a zona de arrebentação. Que mais tarde, vista do alto-mar, fica muuuuito interessante.
E se me permitem a indicação: *La velocidad de las cosas* é O livro do Fresán. (Como o próprio reconhece, diga-se de passagem.) Tem muito desse enamoramento pela própria estrutura do texto, sim, mas é um “borgismo” assumido com uma auto-ironia tão inteligente que faz a gente entregar os pontos.
Abraços a tod@s! E parabéns pelo blogue, xará!
Valeu, Sérgio. Obrigado por aparecer. Um abraço.