As livrarias pequenas ou decadentes eram as melhores. Sentimentalismo? Picas: ausência de câmeras. Esgueirava-se entre as estantes feito réptil, puro sangue frio em movimento.
Sim, um lagarto. Com olho de ave de rapina para que nada lhe escapasse: localização da obra em foco, vendedores mais próximos, possibilidade de flagra por meio de traiçoeiros espelhos ou jiraus. Suích, suích, lá ia ele dobrando esquinas acolchoadas de best-sellers, iguana com olho de gavião e mente hiperativa de escritor.
A obra em foco era sempre, de algum modo, a mesma: o último sucesso de um de seus companheiros de geração. Pareciam inesgotáveis seus companheiros de geração. E os sucessos que produziam. Acompanhava os lançamentos, pupilas estreitas esquadrinhando os cada vez mais anêmicos cadernos literários dos jornais. Para isso pelo menos serviam os pasquins: montava ali, à mesa do café, o roteiro das próximas investidas.
Às vezes acontecia de esbarrar com seu próprio livro escondido em algum pé de estante empoeirado, entre ácaros e oblívio. Raro, raríssimo. Mas sempre doía. Seu bebê incompreendido, seu prematuro grotesco. Era vexaminoso encontrá-lo nessas incursões, geralmente escondido atrás de tomos impossíveis, um guia de montanhismo lapão, a autobiografia da stripper que foi sucesso década e meia atrás.
Preferia que não acontecesse, que seu rebento jamais tivesse deixado o estado de embrião. Ao mesmo tempo, o encontro sempre lhe fortalecia o ânimo para a tarefa que o aguardava. E um nobre sentimento gelado, temperatura de sáurio, adoçava-lhe o crime por vir.
Profissional orgulhoso, jamais apanhado, lá ia ele. Suích, um camaleão, sujeito sério, ninguém o tomaria pelo que era. Os vendedores sempre se distraíam em algum momento e era o que bastava: em dois segundos, estava consumado o delito. Hora de vazar.
Na rua, com as pupilas de rapineiro se adaptando à luz do sol e um gosto de sangue na boca, o coração batia no esôfago e a euforia lhe desenrolava um tapete de vento sob os pés.
Missão cumprida: mais um paparicado companheiro de geração escondido atrás de barreiras inexpugnáveis de guias de montanhismo lapão e autobiografias de stripper.
Uma injustiça a menos neste mundo mau.
16 Comentários
Sérgio, você captou as vibrações que emanam do meu peito. Nunca me transformei em réptil para realizar a façanha, mas tive vontade. E tenho vontade. Quem sabe um dia. Todos nós, os incompreendidos. Numa turba agitada, levantando poeira nas livrarias. Você comandando a tropa, claro!
Tibor, fico feliz por ter conseguido captar o que lhe vai n’alma. Um escritor não tem o direito de desejar mais do que isso, concorda? Mas você vai ter que achar outro líder pra sua turma de incompreendidos.
Ora bolas! Você um líder nato.
Obrigado, meu caro. O problema é que me sinto um pouco, digamos, compreendido demais para aceitar tão nobre incumbência.
Em geral faço o contrário. Resgato meu “prematuro grotesco” das pilhas empoeiradas e o coloco diante dos pseudo-literários de auto-ajuda.
Injustiça seria passar por aqui e não deixar ao menos um comentário: genial, Sérgio!
Menos, Pablo. Menos…
liga não pablo. sáurio na área!!! kkkkkk
Muito bom!
Sérgio,
cumprindo meu ultimato… E o livro “Sobrescritos”, é pra quando mesmo?
Sérgio,
…Acho que o Nareba escapou da Penitenciária.
Iconoclasta perambula pelas livrarias fazendo justiça…
Muito bom!
Tomás: se o livro que você desenterra da pilha é o ‘Cama de cimento’, está bem desenterrado. Ainda não li, mas tenho boas referências. Está na fila.
Molica: valeu, amigo. E boa sorte com o lançamento de ‘O ponto da partida’.
Obrigado Pablo, João e todos, abraços.
Ai, ai. Esse post valeu meu dia.
Pelo conto e pelos comentários.
Olá Sérgio,
Estava falando mesmo do Cama de Cimento.
E quanta honra estar na sua fila!
Abraço
Muitas vezes, são estantes inteiras que me dão ganas de serem emparedadas…
Sérgio,
Bom pra daná este textículo ai… afiadim, afiadim.
Ironia com verve, fluidez com sacação.