“Se porrada educasse as pessoas, bandido saía da cadeia santo.” Que o presidente Lula fala a língua do povo já se sabia. O que ainda choca muita gente – mas talvez não devesse, num país capaz de transformar em febre a grotesca coreografia do “créu” – é ouvir de tão alta autoridade um palavrão desse quilate. “Porrada” e “porra” são tabuísmos tão velhos quanto o português, mas, mesmo sendo figurinhas fáceis na linguagem cotidiana, ainda não ganharam acesso aos salões do discurso educado. Por quê?
Como se sabe, porrada tem dois sentidos principais: o de “pancada, cacetada”, que Lula usou, e o de “grande quantidade”. O primeiro não deveria, a rigor, ser considerado palavrão. Vem da acepção mais antiga de porra, hoje em desuso, que nada tinha de grosseira: clava, maça, cacete, arma dotada de cabeça redonda e haste alongada. Segundo o filólogo Corominas, deve seu nome – acredite quem quiser – ao alho-porro ou poró, com o qual tinha semelhanças de forma, por meio do latim porrum (alho).
Se a porrada-pancada não é bem um palavrão, a associação de porra e seus derivados com sentidos chulos tornou-se tão dominante que contaminou tudo – até o alho, chamado de “poró” por eufemismo, a fim de evitar ressonâncias desagadáveis à mesa.
Hoje porra é termo de múltiplas aplicações, até como interjeição e elemento de pontuação da fala, mas sua transformação em palavra cabeluda cumpriu duas etapas básicas. Primeiro, a porra-arma, mãe do porrete, achou emprego metafórico como nome do órgão sexual masculino. Bocage, o grande poeta fescenino, versejava assim no fim do século 18: “Que esse monstro, que alojas nos calções,/ É porra de mostrar, não de foder”. O passo seguinte foi dado apenas no português brasileiro, segundo dicionaristas dos dois lados do Atlântico: o nascimento, por extensão de sentido, da acepção de esperma.
Publicado na “Revista da Semana”.
12 Comentários
Pode ser inocência (ou boca e ouvido sujos) mas não consigo ouvir porrada como expressão chula, em qualquer dos sentidos. Vulgar, é possível. Pouco, digamos, presidencial, é discutível (eu, particularmente, acho que Lula só ganha em popularidade quando solta uma porrada dessas). Mas chula não.
Sobre a frase em si, parace saída da boca do filósofo Neném Prancha.
Coincidência: há uma semana estávamos discutindo à mesa sobre o alho-porró. Obrigada pelo esclarecimento 😉
Cássia, direto da Petrópolis gaúcha…
Sérgio: o “alho porrô” [assim é que ouço em Brasília] não seria antes galicismo que eufemismo? Isto se tornaria ainda mais interessante se consideramos que o francês [poireau/ porreau] talvez venha do português “porro”, ou do italiano “porro.” Seria algo parecido com o nosso paulista italiano “risole”, do francês “rissole”, que, no frigir da massa, parece vir do português “rissol…”
a
Murilo: considerando que chulo, antes mesmo de “obsceno”, quer dizer “pouco elevado, grosseiro, rude”, não tenho dúvida nenhuma de que porrada é chulo. E nada “presidencial”, evidentemente. O que não contradiz – pelo contrário, explica – os benefícios que Lula tira desse tipo de postura.
Cassia, de nada. A Petrópolis do Sudeste saúda a do Sul!
Curiango: não sei se a sonoridade francesa influiu no porrô. Digamos que sim. Ainda faltaria explicar o porró e principalmente o poró – este sim, como eu disse, um claro eufemismo (e forma dominante no Rio de Janeiro). Me parece que o eufemismo continua sendo, portanto, a questão central. Quanto à curiosa história das influências cruzadas, há casos em que isso ocorre mesmo, mas não estamos diante de um deles. Dicionários de francês sustentam que ‘porreau’ – ou ‘poireaux’, na evolução parisiense da palavra – veio diretamente do latim.
Abraços.
Pedro,
além de porrô e do poró mencionado pelo Sério, tb já ouvi porró. Também tinha a impressão de ser um galicismo.
Chulo ou não, diante do dinamismo da língua, com ou sem a ajuda do presidente, a porra, cedo ou tarde, adentrará os salões do discurso educado.
Tens razão, claro, Sérgio. Eu é que me aferrei apenas ao sentido “obsceno” de chulo. Então, corrigindo. Pros meus ouvidos, porrada é chulo, mas não obsceno.
O que é indiscutível é que alho-porro é uma grande invenção.
Porra, puta merda, caralho….
Porra, que texto bacana. E como por lembrança a lambança do texto vosso ao nosso espirito o barroco traz, e o fescenino vem atrás, segue a porra do Gregório a abonar a vossa:
“Tive debaixo da língua
o pedir-vos uma lasca
da nata do vosso cono,
se é, que tem côdea essa nata.
Quando a culatra vos vi
tão tremenda, e rebolada,
meti logo a mão à porra,
e estive saca, não saca.”
Como se vê, e por incrível que pareça, a acepção original de porra-arma é aqui metáfora (hoje já seria o contrário) da porra-membro.
😉
Só um teste:
Agora foi.
😯