Agora é definitivo: depois de dar a partida na moda dos mashups com o sucesso de “Orgulho e preconceito e zumbis”, que abriu a porta para a invasão dos clássicos da literatura por criaturas pop variadas, de monstros marinhos a robôs steampunk, Jane Austen acaba de se consagrar como a rainha incontestável da reciclagem literária brincalhona-oportunista. A coroação se dará com o lançamento pela editora americana Cleis Press, mês que vem, de Pride and prejudice: hidden lusts (“Orgulho e preconceito: prazeres ocultos”), obra erótica de uma certa Mitzi Szereto. A julgar pelos clichês “românticos” acumulados na capa, estamos no terreno daquele erotismo prêt-à-porter dos livrinhos de banca de jornal, e portanto distantes do sexo transgressivo de Sade, Bataille e Rèage, embora Szereto insinue no site do livro (que inclui um clipe chinfrim) a inclusão supostamente subversiva de alguns temperos gays. No site somos informados também de que esse é o romance que Jane Austen teria escrito “se tivesse coragem”. O estilo do material de divulgação sugere prazeres mais humorísticos que eróticos: Em “Orgulho e preconceito: prazeres ocultos”, todo o elenco de personagens do clássico de Austen é flagrado com as calças desabotoadas e as saias levantadas, numa versão recontada que…
A revalorização da ficção como arte narrativa por excelência, em ligação direta com a tradição romanesca do século 19, parece ser o pano de fundo para o curioso fenômeno de canonização do escritor americano Jonathan Franzen, um tsunami que varreu o mundo ano passado, quando ele publicou o romance Freedom, e que agora vem inundar a costa brasileira com a previsibilidade dos maremotos a pretexto do lançamento de “Liberdade” (Companhia das Letras, tradução de Sergio Flaksman, 608 páginas, R$ 46,50). O livro é bom? É. Maravilhoso? Longe disso. Em contraste com a maioria da humanidade, não me encantei com ele e expliquei minhas razões aqui, sob o título Freedom: Obama no conteúdo, Bush na forma, pouco depois do lançamento americano. Vejo até algo de cômico num superlativo como “o livro do século” que o sério “The Guardian” pespegou no tijolo: se o epíteto abrange o século inteiro, trata-se de uma leviandade; se a ideia é falar do século até agora, decorrido um décimo dele, o correto seria usar uma medida de tempo mais sóbria. Fica evidente, porém, que elogios desse tamanho vão além de questões menores como coerência numérica. Méritos literários à parte, o que o hype franzeniano parece indicar,…
Falávamos das respostas que a literatura brasileira ensaiou ao longo da história para a velha charada de produzir arte relevante num país situado na periferia econômica e cultural do mundo. Como já deixei sugerido, acredito que o novo livro de João Paulo Cuenca, “O único final feliz para uma história de amor é um acidente”, possa trazer um ou dois elementos novos para a conversa. Um deles é o de, roubando novamente a ideia de Machado de Assis com sinal trocado, nos fazer pensar que boa parte da literatura brasileira contemporânea pode estar sofrendo de uma “internacionalidade de vocabulário”. Par oposto do nativismo de Alencar e Gonçalves, em que o índio é enfiado numa forma europeia sem alterá-la significativamente, a “internacionalidade de vocabulário” seria a propensão de soar cosmopolita (todos queremos ser universais, certo?) por meio da citação, do adorno, da ostentação de cultura, sem que isso altere de modo significativo o que está sendo narrado e como. Às vésperas da Copa de Literatura de 2009, o jurado e blogueiro que se assina Doutor Plausível escreveu um artigo curioso afirmando ter contado um a um os casos de name-dropping, de citação de pessoas ou objetos culturais – nacionais e estrangeiros…
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de internacionalidade. A frase que você acaba de ler é uma cópia quase perfeita daquela que abre o mais famoso texto crítico de Machado de Assis, chamado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, de 1873. A troca da nacionalidade pela internacionalidade não tem uma intenção rasa de paródia: com sorte, será o ponto de partida para uma tentativa de jogar luz sobre as respostas novas que a literatura brasileira do século 21 – sim, esta mesmo, que contava com 4.203 leitores na última pesquisa – possa estar formulando agora para o velho problema de produzir arte relevante num país situado na periferia econômica e cultural do mundo. Há também, reconheço, uma forma menos benevolente de encarar este parágrafo: como nariz-de-cera (que em jargão de jornalista quer dizer prólogo enfadonho) para uma resenha do recém-lançado romance “O único final feliz para uma história de amor é um acidente” (Companhia das Letras), do escritor carioca João Paulo Cuenca. Espero ser capaz de desmentir essa impressão. O livro de Cuenca é mesmo o gancho deste texto – para insistir no jargão jornalístico – e vai ser abordado na…
O começo metalinguístico tem um caráter tão lúdico, tão brincalhão, que pode ser uma tentação irresistível para escritores em busca de uma isca suculenta para abanar diante do leitor arisco. Recomenda-se cuidado. O recurso de falar do livro que está sendo lido/escrito, isto é, de usar a linguagem para falar da própria linguagem (metalinguagem é isso), tem sido vítima de tantos abusos em nossos tempos pós-modernos que o efeito pode ser contrário ao pretendido. Não que o recurso seja novo. No Brasil, Machado de Assis já o empregava com propriedade no início de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, publicado na “Revista Brasileira” em 1880, dando uma pista da extravagância que estava por vir: Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Em chave cômica mais contida, Graciliano Ramos fez algo semelhante na abertura de “São Bernardo”, de 1934: Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho. Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade…
O alemão Berthold Zilly, tradutor de Euclides da Cunha e Machado de Assis, e o americano Benjamin Moser, de recente sucesso com sua biografia de Clarice Lispector, chamada “Clarice,”, discutiram por que a literatura brasileira tem presença relativamente discreta no cenário internacional. O penúltimo encontro da Flip, numa Tenda dos Autores esvaziada pela debandada de domingo, foi simpático, com os dois falando um português mais que decente. E levou a uma conclusão de ululante obviedade: o Brasil investe muito pouco, em termos institucionais, na divulgação de sua literatura no exterior. Até chegar a esse lugar comum, entretanto, a conversa trilhou caminhos interessantes, que incluíram uma “defesa” de Paulo Coelho feita por Moser (o que lhe valeu um incompreensível princípio de vaia) e a informação, dada por Zilly, de que foi convidado – mas ainda não aceitou – a fazer uma nova tradução de “Grande sertão: veredas”. Abaixo, alguns trechos do debate: BERTHOLD ZILLY “Uma importante editora de Munique me pediu para fazer uma nova tradução do ‘Grande sertão: veredas’, mas ainda estou pensando se quero me enfurnar por dois ou três anos. É um tempo em que eu não poderia aceitar um convite como este da Flip, por exemplo.” “A…
E a Flip teve sua primeira mesa propriamente flípica. Ao fim da entrevista concedida por Salman Rushdie ao jornalista Silio Boccanera, agora há pouco, o público que lotou a Tenda dos Autores estava cheio de sorrisos. Ali estava, enfim, um peso-pesado da literatura mundial, o homem que ganhou recentemente o Booker dos Bookers por seu livro de estreia, “Os filhos da meia-noite”. Ali estava também um personagem político importante (ainda que à sua revelia), no cenário da relação conflituosa entre o Islã e o Ocidente. E ali estava ainda um pai fazendo o lançamento mundial do livro infanto-juvenil que escreveu para seu filho mais novo, “Luka e o fogo da vida”, com direito a uma breve – e constrangida, mas certamente terna – presença do filho no palco. Resultado: um show redondo, do tipo que faz o público correr para os restaurantes com a cabeça excitada e o coração aquecido. No contexto da Flip, não dá para ser melhor que isso. Rushdie falou do livro que está escrevendo sobre o período em que esteve ameaçado de morte pela fatwa, criticou pesadamente o filme “Quem quer ser um milionário” e não se aborreceu sequer quando, lendo a última pergunta enviada por…