Será que o sexo de um autor, além de inscrito em seus genes, também sai impresso na página entre vírgulas e verbos, de forma inconsciente e sem que ele possa fazer nada para evitar? A discussão, notoriamente inconclusiva, é velhinha, mas acaba de pegar fogo como nunca na Inglaterra. Tudo começou com uma declaração repulsiva dada esta semana por VS Naipaul (foto), prêmio Nobel de Literatura em 2001: a de que não vê nenhuma mulher na história da literatura que possa rivalizar com ele. “Não são minhas iguais”, disse. E, numa tentativa de demonstrar que sua tese não era apenas fruto de um cruzamento teratológico de misoginia com egolatria, acrescentou: “Leio um trecho e, em um parágrafo ou dois, sei se é de uma mulher ou não”. Hmm, sei. O “Guardian” aproveitou a deixa para bolar um certo “teste Naipaul”, pedindo aos leitores que identifiquem o sexo dos autores de alguns trechos literários. É o que estou imitando descaradamente aqui com quatro autores brasileiros, dois de cada sexo. O resultado sai na semana que vem. 1. Eu disse que ateus e crentes fazem parte do mesmo grupo. Todos acreditam em algo. Todos podem dormir e roncar tranquilos, amparados no estofado…
A revalorização da ficção como arte narrativa por excelência, em ligação direta com a tradição romanesca do século 19, parece ser o pano de fundo para o curioso fenômeno de canonização do escritor americano Jonathan Franzen, um tsunami que varreu o mundo ano passado, quando ele publicou o romance Freedom, e que agora vem inundar a costa brasileira com a previsibilidade dos maremotos a pretexto do lançamento de “Liberdade” (Companhia das Letras, tradução de Sergio Flaksman, 608 páginas, R$ 46,50). O livro é bom? É. Maravilhoso? Longe disso. Em contraste com a maioria da humanidade, não me encantei com ele e expliquei minhas razões aqui, sob o título Freedom: Obama no conteúdo, Bush na forma, pouco depois do lançamento americano. Vejo até algo de cômico num superlativo como “o livro do século” que o sério “The Guardian” pespegou no tijolo: se o epíteto abrange o século inteiro, trata-se de uma leviandade; se a ideia é falar do século até agora, decorrido um décimo dele, o correto seria usar uma medida de tempo mais sóbria. Fica evidente, porém, que elogios desse tamanho vão além de questões menores como coerência numérica. Méritos literários à parte, o que o hype franzeniano parece indicar,…
Na revista e muito ampliada área de livros do site do jornal inglês “The Guardian”, a escritora de romances históricos Sara Sheridan passa uma reprimenda severa (em inglês, acesso gratuito) em todos os colegas que resistem a ter uma presença ativa em blogs e redes sociais. “Me entristece ver esses escritores – comunicadores profissionais – ficarem distantes de um meio que clama por suas habilidades e que é, comprovadamente, a melhor forma de comunicação com os leitores”, escreve ela. Sheridan tem uma dose de razão, claro, mas acredito que os recalcitrantes também tenham. Deixando de lado fatores prováveis como ranzinzice e acomodação, é razoável supor que grande parte deles sinta medo de, caindo feito Alice nessa toca de coelho, para usar uma imagem de Margaret Atwood, acabar sem tempo ou cabeça para escrever algo além de posts e tweets. Escritores talvez sejam enquadráveis, tecnicamente, na categoria de comunicadores, e sem dúvida sempre houve os que se notabilizaram mais pelo talento promocional do que pela qualidade do texto. Isso não muda o fato de que escrever requer uma medida de recolhimento, de silêncio mental, sem a qual é impossível distinguir o que é a própria voz e o que é a…
Acendam uma vela por Jacqueline Howett, autora autopublicada e autodestruída em público, numa das histórias mais pungentes – e, para bom entendedor, didáticas – que a selva cheia de novos perigos da internet já propiciou nos domínios da literatura. Os personagens principais do caso são praticamente anônimos. Ou eram anônimos até poucos dias atrás, quando começou a guerra internética que se espalhou feito um vírus de gripe suína pela blogosfera literária de língua inglesa. Jacqueline Howett, nascida em Londres e radicada nos EUA, autopublicou no Kindle um romance chamado The Greek seaman. BigAl, blogueiro de literatura, fez uma resenha do livro em que lamenta os inúmeros erros sintáticos e ortográficos que atravancam a leitura, cotando-o em duas estrelas. Até aí, tudo normal. O problema é que a autora começou a bater boca com o crítico na caixa de comentários. Qualquer pessoa que já tenha acompanhado um desses acalorados “debates” online – e haverá alguém que não, a esta altura do furdunço virtual? – sabe como eles, por alguma razão que parece ter a ver com a própria atmosfera do meio, tendem a degenerar rapidamente num espetáculo muito, muito feio. Quem estiver interessado nas minúcias do vale-tudo pode ler aqui, em…
Um bom indicador de como anda confuso o mundo dos livros é o título de um artigo publicado ontem no “Guardian” por Patrick Kingsley (o rapaz da foto ao lado): “Será este novo livro o matador de Kindle?” Primeiro fator de estranhamento: esse epíteto forçado, “matador de Kindle”, não era reservado até outro dia mesmo ao iPad? Era. Aparentemente, a despeito de todo o seu sucesso comercial, o aparelho da Apple não fez jus a ele. O segundo susto vem ao se constatar que o poderoso objeto para o qual se tenta transferir agora tamanha esperança assassina é só um livrinho de papel – este mesmo que aparece na foto, nas mãos de Kingsley. Chamado flipback book e apresentado como “uma sensação na Holanda, onde já vendeu um milhão de cópias”, o livrinho chegará em breve a outros países europeus. Como o nome diz, “abre para trás”, como certos tipos de caderneta de anotações. Além disso, tudo o que o torna diferente tem a ver com portabilidade e manuseio: é menor que um livro de bolso, tem miolo de papel-bíblia e uma encadernação que facilita a leitura sem o uso das mãos: aberto em determinado ponto, o livro permanece assim…
Certamente não será o maior de seus pecados – a competição, afinal, é duríssima – mas o ditador líbio Muamar Kadafi também se julga escritor. Depois de lançar em 1975 sua obra mais conhecida, o “Livro verde”, um panfleto político-ideológico que se gaba de apresentar “a solução teórica definitiva do problema da ‘máquina de governar’”, Kadafi publicou nos anos 1990, quem diria, um volume de contos – ou coisa parecida. Escape to hell and other stories (Fuga para o inferno e outras histórias) teve uma tradução lançada na Inglaterra no finzinho do século passado e ainda está à venda na Amazon britânica – aqui. Nas palavras do editor, “nesta coletânea, além das visões de um revolucionário e profeta, descobrimos um escritor e um ensaísta”. A crítica do “Guardian” foi bem menos benevolente: “O que descobrimos é uma mente que não consegue desenvolver um pensamento coerente por muito tempo, é cheia de dicotomias grosseiras e de nonsense, e tagarela aleatoriamente, implodindo antes de explodir de novo numa erupção de palavrório surreal”. Ou seja, Kadafi puro.