Concordo com o crítico italiano Franco Moretti, autor do provocante A literatura vista de longe (Arquipélago Editorial, tradução de Anselmo Pessoa Neto, 160 páginas, R$ 34), um dos melhores lançamentos recentes na área, sobre o qual espero falar mais detidamente tão logo consiga digerir seus altos teores de novidade: o estudo de literatura tem muito a lucrar se absorver ferramentas e modelos das ciências exatas. (Relendo essa frase, me dou conta de que, poucos anos atrás, eu teria reagido com violência à idéia de Moretti, que agora acho brilhante. Mudaria o Natal ou mudei eu?) Um exemplo simples de como uma abordagem quantitativa pode contribuir para a compreensão do fenômeno literário acaba de ser publicada no blog americano The Millions (dica do blog de livros do Guardian): o que começa como uma série de estatísticas – sobre a quantidade de livros estrangeiros laureados em sua língua de origem que foram traduzidos para o inglês – acaba por traçar um quadro curioso das cotações de diversos idiomas nas Bolsas de Valores Literários de Nova York e Londres. Nada que mereça uma tese de doutorado, é claro: estamos no terreno das curiosidades blogueiras. Mas se não valer um bom post vadio, não…
A escritora inglesa Doris Lessing disse em entrevista a um programa de rádio veiculado ontem à noite em seu país (via The Independent, em inglês) que ganhar o Prêmio Nobel de Literatura de 2007 foi um “tremendo desastre” – se alguém tiver uma tradução melhor para bloody disaster, que obviamente não inclua o adjetivo “sangrento”, aceito sugestões. Ah, mas essa velhinha (88 anos) não está só fazendo tipo, ensaiando uma cara cool para mostrar diante das câmeras? Não creio, Doris Lessing nunca foi assim. Está certo que talvez exagere um pouco, esquecida do milhão de dólares do prêmio – que ela diz já ter gasto inteirinho com filhos e netos. Mesmo assim, tudo indica que sua angústia é real e tem a ver com o medo de nunca mais escrever. A energia, queixou-se, está acabando: “A única coisa que faço é dar entrevistas e posar para fotos”. Ué, mas dar entrevistas e posar para fotos não é o máximo a que qualquer ser humano pode aspirar neste mundo de celebridades? Foi preciso Doris Lessing externar sua bronca para nos lembrar, como devia ser óbvio desde o início, que não.
Esta notícia não é lá muito nova, mas esteve longe de merecer a devida fanfarra, confinada a notinhas discretas aqui e ali. E os leitores deste blog que apreciam a seção “A palavra é…” vão entender que ela merece muito mais: no fim do mês passado, o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo pôs no ar em sua versão integral, para qualquer um consultar online e sem necessidade de cadastro, uma das obras mais cobiçadas por amantes de dicionários raros – o “Vocabulario Portuguez e Latino” do padre Raphael Bluteau, a primeira grande obra de lexicografia da língua portuguesa, publicada em dez volumes entre os anos de 1712 e 1728 (quando esta página abrir, clique em “dicionários on-line” na coluna da esquerda). É difícil exagerar o valor da notícia. Volta e meia, em meus escritos sobre palavras, recorro à obra pioneira, ambiciosa e deliciosamente imperfeita de Bluteau, seja para confirmar a antiguidade de um vocábulo ou acepção, seja para dar cores pitorescas a algum tópico mais árido de etimologia. Para tanto, eu contava até agora com um CD-ROM lançado há alguns anos pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em edição limitada e quase secreta, que consultava…
Depoimento de um famoso machadiano: Para mim, Capitu. Nos encontramos na casa de campo emprestada por um amigo meu, diplomata atualmente fora do país, adido cultural em Varsóvia. A casa fica no alto da Gávea e não poderia ser mais discreta, a fachada cochilando atrás de uma cerrada fileira de buganvílias. Faz três ou quatro meses que Escobar morreu no mar – tempo suficiente para que a saudade do adultério e suas vertigens, aliada à casmurrice do marido, empurre Capitu a esse encontro perigoso com alguém que mal teve tempo de conhecer. Fechada a porta, as poucas horas de que dispomos ganham imediatamente a plenitude de dias e a intensidade de segundos. Como descrever aquilo? Capitu se entrega e se nega ao mesmo tempo, cada negação explodindo numa entrega maior, como se lutasse consigo mesma. Dor, prazer, vergonha, febre. É mandona tanto na luxúria quanto no recato: aqui! pára! aperta! chega! mais! Saio exaurido, com um sorriso idiota nos lábios, feito um bebê farto do leite materno. Melhor que a encomenda. E você, que personagem da literatura levaria para a cama?
O modismo da juventude foi muito conveniente para jovens como eu, que fizeram dele seu ganha-pão, mas acho que está na hora da crítica adotar algum parâmetro mais significativo. O escritor inglês Evelyn Waugh escreveu essa frase em 1932, quando, beirando os 30 e já em seu terceiro livro, via-se como um ex-enfant terrible das letras britânicas. Poderia estar falando do Brasil dos últimos anos. Muita gente na literatura nacional – e nos arredores, sobretudo nos arredores – andou ocupada recentemente com o velho mito do jovem gênio, também conhecido, em sua encarnação 2.0, como escritor-blogueiro. Na falta de um mercado leitor significativo para a ficção escrita no país, criou-se uma espécie de bolha de marketing em que, uns por ingenuidade, outros por esperteza, parte da imprensa e da crítica empenhou-se em vender aos leitores uma mistura maluca de continente e conteúdo. De repente, dois únicos critérios pareciam nortear a busca de relevância literária: a idade (pouca) e a virtualidade (enorme). Bastava ler com olhos livres para perceber que, como é natural, raros daqueles nomes justificavam o burburinho. Não se revoga por decreto a severidade da relação ancestral entre quantidade e qualidade na arte. Acontece que olhos livres são mercadoria…
A tradução literal de investment grade por grau de investimento, embora ligeiramente desajeitada à primeira vista, não chega a soar estranha a nossos ouvidos lusofônicos porque a idéia de grau como nota que se tira numa prova está presente na linguagem comum, e no fim das contas trata-se disso mesmo – um conceito, uma posição em determinada escala de valores. No exame da banca financeira internacional, o Brasil foi bom aluno e deu mais um passo à frente, subiu um degrau, credenciando-se a uma recomendação firme de investimento. Não faltará quem considere a metáfora escolar um tanto humilhante para um país soberano. Paciência: assim caminha o mundo globalizado. Esse grau, no fundo, não é outro senão aquele que se usa para escalonar vários sistemas de medição – da temperatura à proximidade em relações de parentesco, do teor alcoólico das bebidas à potência das lentes dos óculos. O que muda, naturalmente, é o contexto, o sistema. Em todos eles, porém, o grau corresponde sempre a um passo da escala. E é exatamente do sentido de passo (gradus em latim) que a palavra vem. A presença de gradus em nossa língua é robusta, embora nem sempre se deixe detectar a olho nu….
A tradução literal de investment grade por grau de investimento, embora ligeiramente desajeitada à primeira vista, não chega a soar estranha a nossos ouvidos lusofônicos porque a idéia de grau como nota que se tira numa prova está presente na linguagem comum, e no fim das contas trata-se disso mesmo – um conceito, uma posição em determinada escala de valores. No exame da banca financeira internacional, o Brasil foi bom aluno e deu mais um passo à frente, subiu um degrau, credenciando-se a uma recomendação firme de investimento. Não faltará quem considere a metáfora escolar um tanto humilhante para um país soberano. Paciência: assim caminha o mundo globalizado. Esse grau, no fundo, não é outro senão aquele que se usa para escalonar vários sistemas de medição – da temperatura à proximidade em relações de parentesco, do teor alcoólico das bebidas à potência das lentes dos óculos. O que muda, naturalmente, é o contexto, o sistema. Em todos eles, porém, o grau corresponde sempre a um passo da escala. E é exatamente do sentido de passo (gradus em latim) que a palavra vem. A presença de gradus em nossa língua é robusta, embora nem sempre se deixe detectar a olho nu….
Quando decidiu que seria escritora, Maria Cândida descobriu que, sem saber, já vinha se preparando nos últimos anos para aquele momento: estavam a postos o ouvido bisbilhoteiro, o olho clínico, aqueles surtos mórbidos de introspecção a cada café-da-manhã, o cabelo mais curto de um lado que do outro, os óculos de antiquário, as camisetas pretas puídas, o desapego a modismos e coisas materiais. Aí, como já tinha computador, foi só descolar um bom corretor ortográfico em versão pirata e espetar em sua parede de cortiça uma coleção de frases sobre a arte de escrever, com aquela genial da Dorothy Parker encabeçando a lista, e esperar. Quando a espera começou a se prolongar além do razoável, Maria Cândida acrescentou à sua escrivaninha um porta-lápis com o logo da Granta e um exemplar de The art of fiction, de John Gardner, que, mesmo sem saber inglês, passou a abrir em páginas aleatórias e folhear preguiçosamente sempre que ameaçava se impacientar. Depois comprou uma cadeira de escritório com ajuste de altura, um pôster comemorativo dos 50 anos de O encontro marcado, duas dúzias de lápis coloridos, uma coleção de cadernos de capa dura, uma luminária verde-água totally anos 50, uma caneca de chá…
Os leitores deste blog já sabiam da novela. Agora ela chega oficialmente ao fim – e se isso não for motivo para gritar “parem as máquinas!”, não sei o que será. Trinta e um anos depois de sua morte, Vladimir Nabokov está lançando livro novo. Dmitri, seu filho, levou todo esse tempo para decidir contrariar o último desejo do pai, que queria ver o manuscrito queimado, e publicar, mesmo inacabado, o romance The original of Laura. Ingenuidade deste blogueiro? Por que não tratar o caso como mais um episódio daquela oportunista e interminável série “Os baús”? Bom, há algumas razões. Primeiro, Nabokov foi, acima de qualquer dúvida, um dos maiores escritores do século 20. Segundo, consta que ele apostava alto nesse livro. Terceiro, era um perfeccionista que trabalhava o texto num nível de acabamento tão estratosférico que seu primeiro rascunho tem tudo para ser mais polido que a maioria das versões finais que circulam por aí. E em quarto lugar – bom, não tem quarto lugar. A não ser, talvez, a resposta que Dmitri, 73 anos, deu em sua entrevista de ontem ao “New York Times” (em inglês, cadastro gratuito), quando lhe perguntaram se a principal motivação para sua decisão…
O vidro martelado da porta tem um letreiro em tinta preta trincada: “Philip Marlowe…. Investigações”. É uma porta razoavelmente decadente no fim de um corredor razoavelmente decadente, num edificio do tipo que era novo ali pelo ano em que o banheiro com azulejo até o teto se tornou a base da civilização. A porta fica trancada, mas ao lado dela há uma outra, com letreiro igual, que não fica. Pode entrar – não há ninguém aqui além de mim e de uma enorme mosca varejeira. Mas não se você for de Manhattan, Kansas. O início de “A irmãzinha” (The little sister, The Library of America, tradução caseira), de Raymond Chandler, o grande estilista da literatura policial americana hard boiled, já devia ser inesquecível quando foi publicado pela primeira vez, em 1949. Ainda mais inesquecível se tornou, porém, depois que milhares de escritores mundo afora fizeram questão de lembrá-lo, lembrá-lo e lembrá-lo de novo, numa avalanche de imitações, sátiras, pastiches, glosas e homenagens que encheriam bibliotecas. Um processo de lugar-comunização tão avassalador que, a esta altura, estará desculpado quem preferir esquecer o inesquecível. É estranho pensar que nunca mais será possível ler esse parágrafo sem ouvir os ecos de suas palavras…