Nos estudos literários, e não só neles, as “humanidades digitais” têm sido um dos campos mais cheios de energia inovadora dos últimos anos. No instigante “A literatura vista de longe”, lançado no Brasil pela Arquipélago Editorial em 2008, o crítico italiano Franco Moretti, um dos pioneiros da área, aplica à história da literatura técnicas de análise quantitativa que até então sentiam-se mais confortáveis nas ciências exatas. Em vez do close reading, da leitura atenta, por que não compreender o fenômeno das letras por meio de uma leitura feita deliberadamente por alto, à distância, em busca de padrões? Hoje a ocorrência de uma palavra ou conceito pode ser mensurada em segundos dentro da obra de um ou vários autores, de um ou mais países, de uma época, ao longo da história. Estamos falando, claro, de mais um subproduto cultural da revolução digital, promovida no caso pelo tsunami de digitalização e indexação de livros iniciado por um pequeno tremor de terra ocorrido nos laboratórios do Google em 2002. Em um ensaio publicado no “Los Angeles Review of Books”, o escritor e crítico canadense Stephen Marche conta essa história e, sem apelar para o saudosismo, especula sobre os limites de seu alcance. Traduzo…
Aqui vai mais uma historinha didática. Tem dois caras sentados num bar nas profundezas remotas do Alasca. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e eles estão discutindo a existência de Deus com aquela intensidade característica que surge lá pela quarta cerveja. Aí o ateu diz: “Olha, não é que me faltem motivos concretos para não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essas coisa toda de Deus e orações. Agora mesmo no mês passado eu estava longe do acampamento quando fui pego de surpresa por aquela nevasca terrível, não conseguia ver nada, fiquei totalmente perdido, estava 45 graus abaixo de zero, e aí decidi fazer exatamente isso: caí de joelhos na neve e gritei ‘Oh Deus, se é que existe Deus, estou perdido nessa nevasca e vou morrer se você não me ajudar!”. Aí o sujeito religioso encara o ateu, todo intrigado: “Bem, depois disso você deve ter começado a acreditar”, ele diz, “afinal de contas você está aqui, vivo”. O ateu revira os olhos, como se o religioso fosse um tremendo paspalho: “Não, cara, só aconteceu que uns esquimós apareceram do nada e me mostraram para que lado ficava o acampamento”. É…
“Viva o povo brasileiro”, obra-prima de João Ubaldo Ribeiro publicada em 1984, venceu a eleição que promovi em 2007 aqui no Todoprosa, perguntando a 50 escritores, críticos e editores qual era o mais importante título da ficção brasileira nos últimos 25 anos. Na época, apresentei esse romanção de 674 páginas como “épico mítico e irreverente da nacionalidade, com seu painel histórico abrangendo quatro séculos”, e não vejo motivo para alterar nenhuma palavra da sumária descrição. Naturalmente, uma obra tão vasta não transcorre num único registro, mas talvez não haja passagem que condense tão bem seu efeito geral quanto a famosa cena de uma batalha da Guerra do Paraguai, ocorrida no dia 24 de maio de 1866, da qual reproduzo o trecho abaixo. Os brasileiros – entre eles muitos baianos, e notadamente os filhos da ilha de Itaparica – estão levando a pior naquela terra “onde não há orixás, mas outras entidades, monstros de cabeça de boi e corpo de serpente com rabo de navalha”. Morrendo aos magotes, despertam a piedade dos orixás a que foram consagrados. Um a um, vão entrando na guerra Oxóssi, Xangô e Iansã. Ogum, porém, aquele que seria mais valioso, guerreiro invencível, se recusa a ajudar….
Em um belo trabalho de Paulo Werneck e Raquel Cozer, a “Folha de S.Paulo” revela hoje a identidade do “jurado C”, que com suas notas esdrúxulas decidiu sozinho os três vencedores do prêmio Jabuti de romance. Trata-se, segundo o jornal, do crítico literário Rodrigo Gurgel, colaborador do jornal “Rascunho” e autor do recém-lançado “Muita retórica – pouca literatura” (Vide). A manipulação do resultado ocorrida na fase final, em que suas notas extremas transformaram em peças nulas as avaliações dos colegas de júri, não seria tudo. O jornal sustenta que o jurado – aparentemente determinado a explorar a polissemia da palavra – contrariou os juízos que ele próprio emitira na primeira fase do julgamento: o livro de Wilson Bueno ganhou dele média 8,67 na etapa eliminatória e 0,33 na final; o de Luciana Hidalgo caiu de 9 para 0,83. Em seu blog, está no ar neste momento uma entrevista em que Gurgel faz uma lista dos críticos literários que admira: “Samuel Johnson, Charles Moeller, Northrop Frye, Edmund Wilson, Lionel Trilling, Joseph Pearce e Marcel Reich-Ranicki. Entre os brasileiros, gosto de Álvaro Lins, Augusto Meyer, Lúcia Miguel-Pereira, Temístocles Linhares, Wilson Martins e, mais recentes, Alexandre Eulalio, João Alexandre Barbosa, Marisa Lajolo, Alcir…
Nu na banheira, encarando o abismo (um manifesto sobre o fim da literatura e dos manifestos) é o prolixo título de um ensaio apocalíptico de Lars Iyer publicado no 12º número da revista “serrote”, que chega às livrarias semana que vem. Trata-se aparentemente de mais um aborrecido atestado de óbito da literatura, como aqueles que críticos sem conta vêm emitindo – para um departamento onde logo lhe carimbam “arquive-se” – há pelo menos um século. No entanto, o ensaio de Iyer se destaca da produção habitual dos apocalípticos por dois motivos. O primeiro é que é bem argumentado e bem escrito, com paixão e verve, característica respeitada pela tradução de Thiago Lins e que só um verdadeiro amante de literatura (um necrófilo, segundo o argumento do autor) poderia lograr. O segundo motivo é mais interessante ainda: sendo também ficcionista – é professor de filosofia numa universidade inglesa e autor de dois romances – Iyer acaba deixando claro, na parte final do texto, que discute consigo mesmo. Sua preocupação principal é identificar aquilo que ainda pode ser escrito após a suposta morte da literatura, uma vez que, evidentemente, escrever continua sendo preciso, não apenas para ele como para muitos de nós….
Desta vez o prêmio Jabuti exagerou: a zebra que representou a vitória do estreante Oscar Nakasato na categoria romance, com “Nihonjin” (Benvirá), nem chegou a se impor como o que poderia ser – uma aposta corajosa e estimulante num autor novo, não apenas distante da glória oficial, mas praticamente desconhecido. Essa leitura otimista do resultado anunciado ontem em São Paulo foi imediatamente comprometida pelo fato de que Nakasato venceu graças à traquinagem de um único jurado – identificado por enquanto como “jurado C” – que o cumulou de notas 10 ao mesmo tempo que dedicava aos demais concorrentes uma chuva de notas entre zero (!) e 1,5. Algo semelhante ao que fez nos anos 1980 uma jurada do desfile das escolas de samba do Rio, decretando a vitória da Mocidade Independente. O nome disso é manipulação de resultado. A má fé explícita do “jurado C” – cuja identidade, de acordo com o regulamento, só pode ser revelada após a entrega das estatuetas, dia 28 de novembro – avacalha de vez um prêmio que vem se avacalhando nos últimos anos, emaranhado em escolhas discutíveis, regulamento trapalhão e uma incontrolável metástase de categorias (hoje são 29, com três prêmios para cada uma)…
A crítica jornalística, já disse Antonio Candido, é uma atividade de alto risco. Avaliar com pressa e no calor da hora os méritos de uma obra literária, emitindo juízos que a posteridade terá tempo de sobra para julgar, confirmar ou revogar, é andar na corda bamba. Elogios rasgados a livros medíocres costumam ser esquecidos, mas o oposto disso, o pau firme em obras que depois se revelam imortais, garante uma ridícula espécie de imortalidade aos resenhistas míopes. A Flavorwire, sempre ela, preparou uma saborosa lista (em inglês) de 15 críticas especialmente negativas colhidas por grandes obras da literatura na época de seu lançamento. Traduzi minhas preferidas: SOBRE LOLITA, DE VLADIMIR NABOKOV: “‘Lolita’ é inegavelmente uma novidade no mundo dos livros. Infelizmente, uma novidade ruim. Há duas razões igualmente sérias para que o livro não mereça a atenção de nenhum leitor adulto. A primeira é que ele é chato, chato, chato de um modo pretensioso, floreado e vazio. O segundo é que ele é repulsivo.” Orville Prescott, The New York Times. SOBRE ‘O MORRO DOS VENTOS UIVANTES’, DE EMILY BRONTË: “Como pode um ser humano ter escrito um livro como esse sem cometer suicídio antes de completar uma dúzia de capítulos…
O bastão de país homenageado da Feira do Livro de Frankfurt foi passado ontem, no encerramento da festa, pela representante da Nova Zelândia a Galeno Amorim, presidente da Biblioteca Nacional (foto), em cerimônia despojada. O vídeo completo, de uma hora e meia, pode ser visto aqui por quem estiver muito interessado (aviso que os primeiros minutos estão sem som). O escritor amazonense Milton Hatoum falou brevemente em nome da literatura brasileira, exaltando a antropofagia oswaldiana, depois de ler um trecho de seu romance “Dois irmãos”. Disse que o evento do ano que vem é a chance de “reparar uma grande injustiça, pois o boom da literatura latino-americana foi um boom da literatura hispano-americana”. Um pouco mais tarde, Arthur Nestrovski e Celso Sim apresentaram uma seleta de canções brasileiras em clima extremamente cool, só voz e violão. Um verso mais sincopado de Chico Buarque acabou engolido (antropofagicamente?) por Sim, mas poucos da babélica plateia devem ter notado. O resto do show de bolso correu com bom gosto e sem sobressalto. Sem sobressalto, mas também sem colorido e até com uma certa solenidade – no mesmo tom do vídeo oficial que a delegação brasileira preparou (veja abaixo) e em contraste marcante com…
O chinês Mo Yan, que ganhou hoje o Nobel de Literatura, aparecia em todas as listas de favoritos – na preferência dos apostadores da casa londrina Ladbrokes, estava em quarto lugar –, mas isso não quer dizer que sua obra seja fartamente conhecida no Ocidente. Como quase todo mundo, saí correndo atrás de informações sobre o homem, que não tem nenhum livro lançado no Brasil e que, na loja do Kindle, conta com apenas um título (em pré-venda!). As notícias da premiação (aqui e aqui) e o comentário de Maria Carolina Maia no vizinho “Veja Meus Livros” satisfazem a maior parte da curiosidade que se possa ter sobre o homem, uma escolha que tem inegável dimensão política, daquelas que o Nobel gosta de fazer. A partir do pseudônimo que adotou para escrever, e que significa “Não fale”, Mo Yan mantém relações tensas com o mundo oficial de seu país, onde a liberdade de expressão é restrita. A Academia Sueca o saudou por seu “realismo alucinatório” e o comparou a William Faulkner e Gabriel García Márquez. A melhor forma de conhecer um escritor, porém, é lê-lo. Por isso decidi traduzir o trecho inicial do romance Life and death are wearing me…
O mundo britânico das apostas, que tem na Ladbrokes seu principal palácio, não entende nada de literatura. Mesmo assim, todo ano movimenta fortunas às vésperas do prêmio Nobel de literatura, que será anunciado amanhã. Os jogadores da Ladbrokes, vindos virtualmente dos quatro cantos do mundo, não precisam ter lido um único livro do japonês Haruki Murakami (foto) para levá-lo ao topo da lista de favoritos – que é, confortavelmente, sua posição atual, depois que arrefeceu o ímpeto do azarão Bob Dylan. Os apostadores apostam em tudo o que for possível apostar, de corridas de cachorros a quem será o próximo arcebispo de Canterbury. Bastam rumores, palpites que por alguma razão soem mais convincentes do que outros, suposições de informação privilegiada. Não costuma dar certo: a Academia Sueca é competente em garantir que o resultado do prêmio nunca vaze e quase sempre surpreenda – para o bem e para o mal. Isso não se deve ao fato de os clientes da Ladbrokes não entenderem de literatura. Gente profundamente enfronhada no meio não se sai melhor nessa hora. Prêmios culturais têm mais em comum com jogos de azar do que seus promotores gostariam de admitir. De qualquer modo, o ranking de escritores…
Prêmios domésticos anunciados, Feira de Frankfurt à beira de começar, Nobel de literatura marcado para esta quinta, para mim não houve notícia literária mais importante enquanto eu estava de férias do que a morte, dia 30 de setembro, aos 86 anos, do escritor mineiro Autran Dourado. O autor de livros como “A barca dos homens”, “Ópera dos mortos” e “O risco do bordado” andava meio esquecido faz tempo. Como disse em um afetuoso artigo no último Sabático o crítico Silviano Santiago, que há alguns anos acompanhou o vencedor do Prêmio Camões de 2000 numa viagem a Sintra: “Pouco reconhecido no Brasil, Autran era recebido em Portugal com as honras merecidas”. O merecimento não se discute: trata-se (verbo no presente, pois certas coisas não morrem tão facilmente) de um romancista de peso, como não há de sobra na literatura brasileira. Sob a temática mineira interiorana que hoje corre o risco de parecer antiquada aos olhos de um país maciçamente urbano, havia um leitor crítico de clássicos e modernos e um ficcionista que refletia com lucidez sobre o seu ofício. Por isso, o livro que escolho para destacar aqui como homenagem póstuma não é um de seus romances, que li décadas atrás,…