Será verdade que só o relato de um anão albino estrábico nascido em Arapiraca no último quarto do século XX tem valor como reflexão sobre a forma única e intransferível pela qual os anões albinos estrábicos nascidos em Arapiraca no último quarto do século XX vivenciam sua condição humana? E se a história envolver um anão albino estrábico nascido em Arapiraca no último quarto do século XX – e gay? Ou, reparando bem,...
Os vapores embriagantes da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que hoje chega ao clímax, são ótimos, mas não negam: o Brasil é um país que despreza a leitura. Entre obrigações escolares, bobagens de autoajuda, cordilheiras de livros para colorir e milhões de exemplares de uma bomba subliterária chamada “Cinquenta tons de cinza”, o brasileiro médio anda lendo 1,7 livro por ano – mais ou menos. Os números co...
É possível que para algumas pessoas a cena abaixo, um dos pontos culminantes do romance “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, publicado em sua versão final em 1891, contenha um spoiler. No entanto, imagino que para os leitores habituais deste blog sua leitura apresente tanta novidade quanto a “revelação” de que Jekyll e Hyde são a mesma pessoa. Ou de que Diadorim é mulher. A intriga básica do livro mais famoso de W...
FINADOS (MANTRA DO ESCRITOR OBCECADO) Cervantes morreu em 22 de abril de 1616. Shakespeare o acompanhou um dia depois, 23 de abril de 1616. Sterne R.I.P. em 18 de março de 1768. No século seguinte, também em março, dia 22, do ano de 1832: Goethe. Flaubert tinha então dez anos, e 58 ao parar de envelhecer, em 8 de maio de 1880. Machado foi fazer companhia a Brás Cubas no dia 29 de setembro de 1908. Mais dois anos e Tolstoi perdeu a...
“O mosteiro frio, austero, longe de mim, mosteiro monumental, de pedra, patrimônio histórico. Eu, de carne.” O confronto tão sucintamente expresso nessa descrição do Mosteiro de São Bento é a principal chave de leitura do mais conhecido livro de memórias do carioca Antonio Carlos Villaça (1928-2005), “O nariz do morto” (Civilização Brasileira), publicado em 1970. Cobrindo da infância ao início da idade adulta do aut...
O mistério que envolve a festejada escritora italiana Elena Ferrante pode começar a ser desvendado pelo leitor brasileiro com a publicação de “A amiga genial” (Biblioteca Azul, tradução de Maurício Santana Dias, 331 páginas, R$ 44,90), o primeiro dos quatro volumes que compõem sua chamada “série napolitana”. Isto é, desde que se tome como autobiográfico o romance narrado por Elena Greco, que reconstrói sua i...
Em 2006, oito anos depois de sair na Espanha, chegou ao Brasil o romance “Os detetives selvagens”, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras, tradução de Eduardo Brandão). A data merece ser lembrada porque se trata de um acontecimento: embora já tivesse dado as caras por aqui com a novela “Noturno do Chile”, foi naquele momento, três anos após sua morte, que o escritor chileno – um desterrado que viveu no México antes de...
Trazer para a seção “Que cena!” o escritor goiano José J. Veiga (1915-1999) é uma forma de acenar para o adolescente que eu fui. O livro de contos “Os cavalinhos de Platiplanto”, de 1959, e o romance “A hora dos ruminantes”, de 1966 – ambos relançados recentemente pela Companhia das Letras em caprichadas edições de capa dura – me deram mais do que prazer de leitura naquele miolo da década de 1970 em que chegaram ...
Acredito ter sido, no fundo, o inconformismo com o fato de literatura e vida parecerem habitar duas dimensões tão separadas da existência o que nos levou a inventar um jogo intrincado que misturava folhetim com uma espécie primitiva de RPG – este, embora já existisse, estava longe de fazer sucesso no Brasil e não pode ser considerado uma influência. Estávamos na primeira metade dos anos 1980 e éramos quatro amigos formandos o...
Por que alguém leria milhares de páginas autobiográficas de um escritor norueguês que levou e leva uma vida nada excepcional? Páginas centradas em experiências comuns como os problemas de relacionamento de um filho sensível com o pai fechadão e o medo que ele tem de repetir o modelo paterno desastroso quando se encontra por seu turno às voltas com fraldas e mamadeiras, enquanto se angustia por ver escorrer entre os dedos como a...
“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.” Assim começa, inesquecivelmente, o único romance escrito pelo mexicano Juan Rulfo (1917-1986). Precisava mais? “Pedro Páramo” (Record, 2004, tradução de Eric Nepomuceno), publicado em 1955, é uma obra-prima de escassas 150 páginas que projeta uma sombra gigante na paisagem da literatura latino-americana, multiplicando-se em ecos numa infini...
– A literatura brasileira contemporânea é uma imensa montanha de cocô. Não produz nada que chegue aos calcanhares da potência de Machado, Rosa ou Clarice. – Pra que ir tão longe? Vamos combinar que também não chega aos pés de Raduan ou do Rubem Fonseca dos bons tempos. – Exato. A literatura virou um espetáculo cheio de som e fúria, mas sem sentido. A tal vida literária tem mais importância do que a arte literária pro...
Acorde pensando no livro. Banhe-se pensando no livro. Coma pensando no livro. Durma pensando no livro. Evite reler o resultado de um bom dia de trabalho mais de sete milhões de vezes. Fracassou? Se fracassou melhor do que antes (crédito para o Beckett), está no caminho certo. Guarde no fundo da gaveta os melhores elogios que receber, para esquecê-los meticulosamente no dia a dia – até precisar deles como agasalho quando vier (vir...
Tirei umas breves férias desta coluna – e do Sobre Palavras – para participar do Salão do Livro de Paris, que este ano teve o Brasil como país homenageado, e atender a outros compromissos de lançamento da tradução francesa de “O drible”. Sábado que vem estarei de volta com novidades. Até lá!...
A estreia da seção Que cena!, em maio de 2012, foi apropriadamente entregue ao maior escritor brasileiro da história: A xícara de café de “Dom Casmurro” trazia um trecho notável – caseiro, objetivo, melodramático e totalmente aterrorizante – do mais importante romance de Machado de Assis. É justo, portanto, que seja Machado o primeiro autor a se repetir neste espaço, agora com um excerto da famosa cena do delírio do na...
A preocupação de não ser estraga-prazeres da leitura de ninguém me obriga a dizer que a cena abaixo, situada ao fim do segundo terço do livro, é o clímax do curto e notável romance “Na praia”, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 2007, tradução de Bernardo Carvalho). Mais do que clímax – desgraçadamente precoce, como logo veremos –, trata-se do fulcro da narrativa, o momento decisivo ao redor do qual o autor inglês ...
O imprescindível jornal mensal “Rascunho”, especializado em literatura, traz na edição que saiu esta semana uma entrevista minha na seção Inquérito, que reproduzo abaixo. Todo mês o jornal curitibano submete as mesmas perguntas – ou mais ou menos isso, pois o número delas cresceu com o tempo – a um escritor brasileiro. O espírito da inquirição é aquele do famoso Questionário Proust, levar o depoente a expor sua “p...