A convicção de que o romance tem um centro faz sentir que um detalhe supostamente irrelevante pode ser substancial e que o significado de tudo que está na superfície pode ser bem diferente. Romances são narrativas abertas a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos dá a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos faz mergulhar num universo tridimensional, vem da presenca do centro, se...
Revitalização da boa e velha arte narrativa. Capacidade de prender o leitor na história que se desenrola nas (muitas e muitas) páginas de um romance-tijolo sem fazer concessões às fórmulas do best-seller. Ambição de dar conta de um momento histórico em seus diversos aspectos por meio de personagens fortes dotados de apetites que o leitor reconhece, a começar pelo apetite propriamente dito. Tudo isso poderia ser dito – e vem...
Mais uma notícia para arquivar na editoria “Fim do romance”? Salman Rushdie vai escrever uma série televisiva americana de ficção científica chamada The next people. “É o melhor de dois mundos. Você pode trabalhar com produções semelhantes às do cinema, mas tendo o devido controle (criativo)”, disse, elogiando o papel fundamental dos autores no formato: “The Sopranos era David Chase, West wing era Aaron Sorkin.” * ...
Agora é definitivo: depois de dar a partida na moda dos mashups com o sucesso de “Orgulho e preconceito e zumbis”, que abriu a porta para a invasão dos clássicos da literatura por criaturas pop variadas, de monstros marinhos a robôs steampunk, Jane Austen acaba de se consagrar como a rainha incontestável da reciclagem literária brincalhona-oportunista. A coroação se dará com o lançamento pela editora americana Cleis Press,...
Tenho o prazer de informar que os leitores deste blog se desincumbiram gloriosamente mal da tarefa de adivinhar o sexo dos escritores a partir de pequenos trechos de sua prosa, na brincadeira proposta aqui sexta-feira passada. Naturalmente, era essa mesmo a ideia: demonstrar a estupidez de uma declaração de VS Naipaul sobre o suposto abismo (de qualidade, ainda por cima) que separa homens e mulheres na hora de escrever. Num universo d...
Será que o sexo de um autor, além de inscrito em seus genes, também sai impresso na página entre vírgulas e verbos, de forma inconsciente e sem que ele possa fazer nada para evitar? A discussão, notoriamente inconclusiva, é velhinha, mas acaba de pegar fogo como nunca na Inglaterra. Tudo começou com uma declaração repulsiva dada esta semana por VS Naipaul (foto), prêmio Nobel de Literatura em 2001: a de que não vê nenhuma m...
Quem gosta de estar em dia com o pulso das discussões literárias deve ir correndo comprar “O livro de Praga” (Companhia das Letras, R$ 37,50), a aguardada contribuição de Sérgio Sant’Anna à coleção Amores Expressos. Ali aos sussurros, acolá aos gritos, a polêmica vem dominando a semana nos meios letrados brasileiros: o livro é muito bom, muito ruim ou mais ou menos? Por enquanto, fica o registro do zunzum em torno de um...
Antes que acabe maio, mês de aniversário do Todoprosa, faça-se o registro: este espaço de discussão de literatura acaba de completar cinco anos. Desde sua estreia no extinto site “NoMínimo”, no início de maio de 2006, foram 1.253 posts, todos ainda acessíveis, e um número de comentários arquivados – 24.312 – que deveria ser maior, não fosse a perda de memória de seis ou sete meses ocorrida numa das migrações de ser...
A revalorização da ficção como arte narrativa por excelência, em ligação direta com a tradição romanesca do século 19, parece ser o pano de fundo para o curioso fenômeno de canonização do escritor americano Jonathan Franzen, um tsunami que varreu o mundo ano passado, quando ele publicou o romance Freedom, e que agora vem inundar a costa brasileira com a previsibilidade dos maremotos a pretexto do lançamento de “Liberdade...
A experiência é meio tosca, provavelmente, como costumam ser os produtos da psicologia social americana, mas não tenho dúvida de que aponta para sacadas profundas sobre a mente e a linguagem. No caso, uma comprovação do insidioso poder das metáforas. Diante de uma reportagem que compara o crime a uma “fera que tem a cidade como sua presa”, dois terços dos leitores dizem que a solução é um aumento da repressão policial (e...
É um lugar-comum dos últimos cento e tantos anos, inclusive ou sobretudo entre escritores, reconhecer que a literatura não tem o poder de transformar a realidade e que sua relevância, se houver, deve ser buscada apenas dentro do círculo simbólico que ela instaura, e só enquanto o instaura. Uma relevância virtual, portanto. O impacto sobre a consciência do leitor individual, e olhe lá, seria o máximo a que uma obra literária ...
E o Brasil finalmente acerta o passo com o escritor catalão Enrique Vila-Matas. O lançamento do romance “Dublinesca” (Cosac Naify, tradução de José Rubens Siqueira, R$ 55,00), hoje à noite, em São Paulo, com a presença do autor, marca o momento em que sua obra tão prolífica quanto festejada passa a chegar aos leitores brasileiros em tempo real ou quase isso: o livro saiu ano passado na Espanha e ainda nem está disponível...
A pergunta do título, que parece pairar no ar do mundo globalizado, foi feita pelo “Los Angeles Review of Books” a Mark McGurl, autor de um livro recente sobre a importância dos cursos universitários de “escrita criativa” para a literatura americana das últimas décadas, chamado The program era. Sua resposta, da qual transcrevo os trechos abaixo, não poderia deixar de ser uma defesa dos tais cursos, que nos EUA são o bode ...
Não fazia tanto tempo que costumavam chamá-la de promessa vigorosa da nova literatura brasileira. Flipou, flopou, fliportou, festpoou, e por cinco ou seis anos, se não foi famosa, existiu inquestionavelmente, carta no baralho das antologias igrejísticas e nome no caderninho dos repórteres de metrópoles e grotões, a fazer aparições frequentes em telas e papéis a pretexto de polêmicas culturais aguadinhas que, sustentadas pelo ...
Está certo que o pós-modernismo andou abusando do truque, mas não é espantoso que ninguém tenha ainda construído um romance em torno do romance perdido de Karl Marx? Skorpion und Felix, Humoristischer Roman (Escorpião e Félix, romance humorístico) foi escrito em 1837, quando o então futuro autor do “Manifesto comunista” tinha 19 anos, e aparentemente destruído por ele mesmo – com exceção de uns poucos fragmentos, que ...
Nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a vê-la tragicamente. O cataclismo já aconteceu e nos encontramos em meio às ruínas, começando a construir novos pequenos habitats, a adquirir novas pequenas esperanças. É trabalho difícil: não temos mais pela frente um caminho aberto para o futuro, mas contornamos ou passamos por cima dos obstáculos. Precisamos viver, não importa quantos tenham sido os céus que...
A morte do escritor argentino Ernesto Sabato (1911-2011) no último sábado, a menos de dois meses de completar cem anos, motivou os elogios fúnebres de praxe. Pena que o necrológio, esse gênero cheio de superlativos que precisa dar ao leitor a ilusão de que o redator tem os olhos marejados, não seja bom condutor de inteligência e senso de perspectiva histórica. É porque Sabato merece ambos que o artigo publicado ontem no jornal...